Ele está lá fora.

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NOTA: "Antes de mais nada, eu gostaria de deixar claro, que a parte em que eu falo a respeito do "nascimento do wendigo", é apenas a visão do narrador sobre o que acontece em corações mesquinhos, quando a fome se faz presente.

Entretanto, minha forma de pensar não tem absolutamente nenhuma relação com isso, e eu não acredito nestes ideais citados pelo narrador. É apenas a forma mais clara de se explicar como surgem os wendigos."

— Você tem certeza do que está dizendo, Ashley? — Chris indagou, totalmente atônito enquanto amparava Samantha. Ela estava tão pálida e fria, que Chris teve que a sacudir por um instante, até se dar conta de que ela estava bem.
Foi como se em uma questão de segundos, seu mundo tivesse desmoronado mais uma vez. Aquela maldita montanha, havia lhe tirado duas pessoas a quem amava e agora também lhe tirara o filho?! Isso seria demais, para suportar.
Ainda se apoiava em Chris, quase podendo cair sentada ao chão. A testa transpirava exageradamente, apesar do frio intenso. A respiração havia perdido o ritmo e se sentia tonta e completamente enjoada.

Ashley ainda continuava ali, encolhida, apavorada, apenas os observando enquanto o rosto estava banhado em lágrimas. Ela movia a cabeça negativamente, agitando a cabeleira ruiva de um lado outro, apertando o crânio entre os dedos. Era como se estivesse se recusando a aceitar o que havia acontecido.

— Eu não sei! Eu não sei, Chris! — Gritou. — Eu o deixei na cama e desci por um segundo! Aí eu ouvi o grito daquela coisa e quando voltei ao quarto, o garoto não estava mais aqui! — Havia um tom desesperado, na voz fina de Ashley e os soluços se faziam cada vez mais audíveis. — Me Desculpa, Sam! — Ela pedia, enquanto Samantha agora já conseguia ficar de pé, sem se apoiar em Chris.

A expressão confusa havia sumido de sua face, dando lugar a um olhar frio e repleto de seriedade. O cenho foi franzido, denotando de forma clara a raiva que sentia naquele momento.
Aquele lugar já tinha lhe tirado tudo, mas não levaria seu filho, nisso poderia apostar.
Apertou a lanterna entre os dedos com tanta força, que podia sentir o metal gelado fazendo pressão contra a pele.
Estava tão furiosa com o que havia acontecido, que só conseguia culpar a si mesma. Afinal, ela que havia levado o filho até lá.
Por um momento, odiou Josh! Quis culpá-lo pelo que havia acontecido. No entanto, a realidade lhe caiu como o véu que descobre o rosto, quando se deu conta de que ele não havia tido culpa alguma. O peso não pertencia a ele, e sim a si mesma.
Recuperou o ar, ponderando por breves instantes sobre o que deveria ser feito. Nunca fora impulsiva, mas naquele momento eis que isso se fez necessário.
Já não havia mais medo no rosto de Sam, e sim uma raiva a qual lhe faiscava pelos olhos.
Não disse nada, apenas virou-se de costas para ambos, apressando o passo para fora do quarto. Foi detida por Chris, que lhe havia segurado o pulso de forma firme, fazendo-a virar-se e fitá-lo. 

— Aonde você vai? — Ele perguntou temeroso, enquanto Sam puxava bruscamente o próprio braço, se livrando da mão dele.

 — Vou procurar o meu filho! — Respondeu em tom ríspido. 

Chris havia tornado a segurar seu pulso, quando Sam havia se virado novamente em direção a porta, puxando-a para perto novamente. 

— É perigoso ir lá fora sozinha, com o Wendigo andando por aí! — Ele afirmou, enquanto Sam novamente puxava o braço de forma brusca, dando um "tranco", até se desvencilhar da mão que lhe envolvia ao pulso. 

— Ele que vai ver o que é perigo de verdade, se machucar o J.J. — Respondeu de forma agressiva e determinada, correndo para fora do quarto.

A quantidade de wendigos, havia aumentado assustadoramente. Aquele solo, sempre seria um lugar amaldiçoado, enquanto ainda houvessem pessoas famintas e perdidas durante o inverno rigoroso. Pessoas fragilizadas, dominadas pela fome e pela loucura que apenas a solidão e o abandono podem trazer.
Almas perdidas, condenadas a uma vida vazia. Uma vida aonde o sangue e a carne de outrem lhe são as únicas coisas capazes de aplacarem um vazio bestial.
O frio sempre faria vítimas naquele lugar. E não importa para onde você tente correr, o espírito do wendigo o encontrará e o tornará a sua nova vítima; o novo escravo de seus anseios e vontades.
E quando sua alma é corrompida pelo espírito do wendigo, ele estará vivo dentro de você para todo o sempre, como o diabo que permanece à espreita das almas atormentadas. Quando você olhar o seu reflexo em uma poça turva e enlameada, verá que já não há mais humanidade em si.
Seus olhos se tornam leitosos, sua pele fica dura como uma carapaça e seus membros se alongam.
Seus dentes se tornam afiados como pequenas lanças mui pontiagudas e você já não sente mais frio, ou remorso. E quando dá por si, perde toda a consciência e a humanidade que já tivera algum dia, tornando-se apenas uma besta faminta, inteligente, desesperada por estraçalhar e destruir alguém que outrora fora seu semelhante.

Ora, vamos! Se estão com fome e frio, a solução é simples. Pra quê se prender a conceitos obsoletos, não é mesmo? Garanto que em outra ocasião, você seria a presa de outra pessoa faminta, na montanha.
Faz ideia de quantas pessoas já fizeram isso, para "sobreviver"? Você não seria o primeiro! Todos nós temos fraquezas e limitações. É patético, eu sei, mas não deixa de ser verdade. Aceitar que todos nós somos unicamente Hyde e que Jekyll não passa de um disfarce infame, seria a maior libertação para a raça humana.
Jekyll não existe! Encarem a realidade e se libertem destes valores baratos e falsos! Porque no final das contas, ninguém tem bondade dentro de si.
O monstro é único e absoluto dentro de nós, sempre será. Pois desde que nascemos, há a dissimulação para conseguir tudo aquilo que queremos.

Acham que estou sendo exagerado, meus caros? Então reparem nas ações de um recém-nascido.
Tudo começa no ato do nascimento: Todos já nascem causando dor à outra pessoa. A mãe sangra, grita e às vezes é até mesmo mutilada para que o filho venha ao mundo.
Tudo na natureza human, gira em torno do sangue, da dor, da violência.
E já nos nossos primeiros minutos de vida, aprendemos que se chorarmos vamos conseguir aquilo que queremos.
Quer ação mais egoísta do que esta, de aprender truques para conseguir aquilo que desejamos? Conforme vamos crescendo, passamos a aprender cada vez mais formas mesquinhas de termos o mundo a nossos pés.
E é aí que surgem os primeiros impulsos assassinos. Mas a sociedade em seu mundo de regras, determinou que isto seja errado, mesmo que o pecado seja no fundo o que todos querem.
Mas permitam que eu lhes conte um segredo, caros leitores? Quando se está perdido no meio do nada, sentindo um frio intenso lhe perfurar cada parte do corpo e a fome lhe consumir de forma devastadora, os valores desaparecem. Quando isso acontece, é cada um por si. O mais forte sobrevive e o mais fraco se torna alimento. É isso o que acontece, com todo aquele que se alimenta de carne humana nas montanhas. O destino cruel, que os leva à um caminho sem volta, rumo a degradação.
E enquanto houverem aventureiros inconsequentes, a montanha continuará fazendo novas vítimas para aprazerem o ego insano do wendigo.

Ainda sinto nossa ligação. (Until Dawn - Josh and Sam)Onde histórias criam vida. Descubra agora