Capítulo 9, O desertor

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“Ai-ai, caralho. Toma cuidado!” Willem disse ao sentir a dor que a agulha de osso em formato de gancho causava ao perfurar sua pele para abrir caminho para a linha de Vazs. Ainda era noite, e eles estavam na saliência, sentados ao lado da bagunça que havia restado depois do ataque do urso. Via-se provisões destruídas e espalhadas por todos os lados.

“Relaxa,” Disse o amigo “sei o que estou fazendo. Não é a primeira vez que dou pontos. E se você ficar parado por cinco minutos, quem sabe eu consiga terminar esses ainda hoje.”

Willem tentou obedecer, mas a cada fisgada da agulha ele sentia seu braço tremer e recebia uma reprimenda de Vazs. Os pontos, que já estavam quase prontos, eram costurados na parte de cima do antebraço esquerdo dele. Lá dois grandes cortes levemente arqueados desenhavam-se sobre sua carne – marcas de sua última batalha. No frenesi de seu último ataque contra o urso, Willem jamais notara as garras riscando contra seu braço e abrindo caminhos por sua pele. Só percebeu bem depois. Quando o seu corpo esfriou e o calor viscoso do sangue fez-se notar contrastando com a água gelada da chuva.

Mazzo já havia recebido pontos – também de Vazs – e agora estava a dormir. Na parte interna de sua coxa direita havia cortes paralelos e profundos que agora estavam cobertos de pequenos nós pretos de cima a baixo. Depois foi a vez de Willem.

“Pronto.” Disse Vazs, após terminar o curativo de Willem. “Agora tente descansar. E não force os pontos, nem coce.Se estourarem não poderei fazê-los de novo.”

“Estão muito bons.” Disse Willem olhando para seu antebraço enquanto abria e fechava os dedos para testar o movimento da mão. “Apesar de ser meio açougueiro, você até que se virou bem.”

O amigo retornou um olhar indignado, mas o sorriso de Willem indicou a Vazs que aquilo era só uma brincadeira e que ele estava realmente agradecido.

“Foi com algum alfaiate que aprendeu a costurar gente tão bem?” Emendou ele, tentando fazer o amigo rir. Mas a pergunta não obteve o resultado desejado. Ao invés de um sorriso, a frase trouxe uma expressão vazia para o rosto de Vazs, como se lhe doesse reviver tais memórias.

“Bom, se você quer saber, foi no exército.” Respondeu sem olhar para Willem. “Não se sobrevive muito tempo na guerra quem não sabe cuidar de seus ferimentos. Já vi pequenos cortes não tratados causarem febres e mortes horríveis a muitos guerreiros que antes andavam perfeitamente saudáveis. Na primeira oportunidade que tive, aprendi a limpar ferimentos e dar pontos com algumas meretrizes seguidoras de acampamento. É útil…” Completou por fim, silenciando-se depois.

Willem achava curioso estar fugindo de soldados e ter no seu grupo dois antigos arqueiros do Exército Real. A curiosidade levou a mais uma pergunta ao amigo.

“Vazs.” Disse ele, atraindo a atenção do amigo. “Já fazem quase quatro anos desde que nos tornamos um grupo.”

Grande novidade.

“Bem, é que… Você nunca me disse por que saiu do exército, e pelo que Gunther me falou você foi um oficial, arqueiro de elite das tropas. Fico pensando no que te fez largar o soldo do rei para passar a viver como nós, proscritos.”

“Bom. Me fale por que você começou e eu te falo os meus motivos.”

Você sabe. Willem quase disse, mas só quando as memórias voltaram aos seus pensamentos que ele entendeu onde amigo queria chegar. Era difícil reviver o passado.

“Foi logo após meu tio Wallace desaparecer.” Willem respondeu, e embora ele também não quisesse falar sobre o quê já estava a muito esquecido, a curiosidade sobre o passado do amigo o fez dizer aquilo que foi pedido. “Eu estava passando fome, e mendigar estava me trazendo mais surras dos guardas do que comida. Em Elkor ninguém se importa.” Ele fez uma pausa, considerando o quê diria a seguir. “Porém um dia Parrel me chamou para participar de um pequeno roubo. Eu aceitei, pois não tinha nada para perder. Já conhecia ele e o Mazzo de tempos, pois costumavam trocar alguns de seus espólios pela carne que meu tio caçava. Eles precisavam de alguém para ficar de vigia enquanto assaltavam um comerciante de vinhos, e minha vida na margem da lei começou.”

Na Escuridão da FlorestaOnde histórias criam vida. Descubra agora