Capítulo 5: Digna de Nobel

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Erguendo a xícara de seu Espresso Brigadeiro, Renata examinou Eduarda dos All-Stars pretos surrados, passando pela saia listrada, até a camiseta de estampa florida. Ou estava ficando louca, ou então a amiga mudara completamente de personalidade nos últimos três dias.

– Que foi? – a otome notou ser analisada e questionou incomodada.

– É que... é raro vê-la sem camisas de anime ou no mínimo uma carinha feliz de olhos grandes em alguma parte da sua roupa! – a amiga deu um risinho.

– A casa da minha irmã não tem as peças que eu gosto, né? – Eduarda baixou o olhar chateada. – Só roupas dela ou algumas antigas minhas... Dei sorte de encontrar estes tênis meus da época do colegial lá ainda, mas estão apertados.

– Voltou a falar com o Serginho?

– Nem a pau! – cruzou os braços num movimento tão súbito que por pouco não derrubou o copo de café diante de si sobre a mesa, a agitação em parte devido ao barulhinho irritante de crianças brincando perto dali, embora não visse nenhuma. – Depois do que ele fez e falou, terá de vir implorando perdão! Isso se eu ainda assim aceitar. Ele não me merece, Rê! Anos e anos com aquele filho da puta, para agora se revelar quem é. A gente passa a vida inteira querendo um nerd ao nosso lado, com os gostos combinando... Bem que eu devia ter me atentado aos sinais. Nerd machista e escroto é o que mais tem!

– Por isso preferi ficar solteira... – ela sorriu compreensiva, e também um tanto superior. – Jamais abriria mão de meus estudos, de minha carreira, por macho. Eles são todos iguais, Duda. Todos assim. E nada irá mudá-los!

– Será? O Serginho precisa de uma lição... – a otome torceu as mãos, maquinando mentalmente. – Aprender qual é seu lugar, começar a respeitar uma mulher como se deve...

Depois de um gole de bebida, Eduarda cutucou um ouvido, certa de que a algazarra das crianças, com suas vozes fininhas, transformara-se em zunido que perturbava sua audição. Não mais sabia, aliás, se eram mesmo crianças ou o canto de passarinhos: insistentes, enervantes...

Levantando em seguida os olhos a Renata, estranhou de novo a pochete branca que ela deixara sobre a mesa desde que chegara. Imaginando conter remédios ou aparato de consulta, a Eduarda fazia-a parecer, em conjunto com o jaleco, uma legítima médica. A amiga era doutora em Física, entretanto – e a presença do objeto só tornava tudo mais estranho.

– Sorte sua não ter namorado, e assim não se estressar com macho... – para disfarçar, a otome retomou o assunto.

– É aí que você se engana... – Renata suspirou. – Nós mulheres estamos sempre sujeitas a nos desgastar com homens, basta partilharmos a mesma sociedade. Algo de ruim também me aconteceu nesses últimos dias...

Em silêncio e oferecendo um olhar acolhedor, Eduarda permitiu que a amiga continuasse:

– Nossa equipe de pesquisa se deparou com um problema quanto à questão da minimização da matéria. A constante de Planck, uma das grandes certezas da Física, que na prática inviabilizaria qualquer transformação do tipo. Meses e meses de desgaste buscando alternativas, procurando burlar o que parecia impossível... E, bem, eu consegui. Meu experimento funcionou. A constante se tornou teoria superada, e o caminho à nossa nova tecnologia totalmente aberto. Dois dias atrás.

– Que notícia maravilhosa! – Eduarda mal conteve a empolgação, mas reduziu o tom de voz ao lembrar-se que aquilo ainda devia ser segredo. – Você ficará famosa mundialmente! Será premiada em tudo que é lugar!

– Talvez... Porém essa não era a intenção de meus colegas – Renata olhou ao próprio colo por um instante, expressão variando entre a indignação e o pesar. – Eles tentaram roubar o crédito para si, Duda. Descobri ao verificar que os dados do meu login no sistema haviam sido simplesmente apagados... e que o professor Cassone já rascunhava um discurso em seu notebook. E-mails trocados com universidades creditavam totalmente a ele, e seus assistentes, a descoberta. O desgraçado já devia estar pensando no Nobel...

A doutora em Física concluiu seu relato com um sorriso travesso:

– Bem, não está mais.

O incômodo de Eduarda pela injustiça cometida com Renata rivalizava diretamente com o outro ainda provocado pelo incessante piar bagunçando sua audição... quando, em dúvida sobre ter ouvido bem ou apenas ser ilusão de sua cabeça, jurou que parte do esguio som se convertera em palavra:

Socorro!

Após mais um imponente gole de seu Espresso, a xícara levantada com o dedo mindinho erguido, o olhar de Renata finalmente se centrou na pochete – não sem antes dividir sincera cumplicidade com a amiga. Tomando cuidado para não voltar o compartimento da bolsa às mesas ao redor, as unhas vermelhas da cientista puxaram lentamente o zíper de um lado a outro, a seguir agarrando o tecido pelas extremidades para ampliar a abertura.

A sequência de reações de Eduarda diante do que viu foi rápida e avassaladora, embaralhando seu cérebro de maneira a acreditar que desmaiaria: primeiro perguntou-se se ainda sonhava, seu sono chegando ao clímax para logo despertar no quarto de hóspedes da irmã rumo a um entediante dia de trabalho. Depois, cogitou ser brincadeira. A amiga sabia do seu vício em action figures, e decerto queria apresentar-lhe modelos hiper-realistas... Físicos tinham daquelas loucuras! Mas, conforme detinha a atenção em cada uma das figuras – um polegar de Renata, inclusive, empurrando uma delas violentamente de volta à pochete quando tentou saltar para sair – concluiu que a revelação era real. Por mais absurda, desmedida... e fascinante que fosse.

– Você conseguiu isso logo na primeira tentativa? – Eduarda levou todo um minuto para manifestar-se em voz alta.

– A tecnologia já funciona perfeitamente – apesar do esforço em conter a preciosa carga dentro da bolsa, a amiga transparecia calma. – Só não é reversível. Ainda não sabemos como desfazer o processo sem, bem... comprometer a integridade material das cobaias.

Embasbacada, a otome passou mais instantes contemplando o conteúdo da pochete, o cantar dos "passarinhos" agora ainda mais alto e nítido; a repulsa transformada em curiosidade em escutá-lo mesmo quando proferia queixas ou xingamentos... e ela até esticou um dedo na direção de um deles para ter a comprovação final quanto a estar acordada; porém, intimidada, deteve a mão na metade da mesa.

Endireitou o tronco, ajeitando-se na cadeira enquanto assumia face repentinamente séria. O pensamento surgido em sua mente lhe soava traquinagem, a parte infantil que permanecera em seu ser adulto cogitando aquilo com uma resolução difícil de aceitar... Mas se Eduarda já se deparara com o impensável aquela tarde, por que não insistir?

– Essa tecnologia... – ela começou tímida, temendo mais admitir dizer aquilo do que ser ouvida pelas mesas vizinhas. – Você... me emprestaria?

Tendo acabado de fechar a pochete, Renata ergueu na mão direita um artefato similar a um bastão de metal, contendo ranhuras nas lateriais e uma extremidade, erguida para cima com a aparência do bocal de uma lâmpada, brilhando azulada no que Eduarda deduziu serem pequenas descargas elétricas.

– Para que acha que servem as amigas?

Meu Amor na EstanteOnde histórias criam vida. Descubra agora