Capítulo 15: Tentativa de fuga

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O episódio do antigo programa "Linha Direta" sobre a tragédia do Edifício Joelma com certeza fora a coisa mais assustadora a que já havia assistido.

Aquilo lhe valera um trauma de pré-adolescência. O fogo se espalhando pelo revestimento do prédio todo de madeira, as pessoas desesperadas morrendo queimadas vivas ou intoxicadas pela fumaça, tirando desnorteadas suas roupas para aguentar o calor... ou pulando das janelas dos últimos andares rumo à morte.

Quem diria que de lembrança tão macabra – que lhe valera uma proibição dos pais de ficar assistindo à TV até tarde – surgiria a aparente solução para o dilema de Sérgio.

Recordava-se bem que, no incêndio, uma mãe decidira recorrer ao extremo para salvar seu bebê, abraçando-o sobre seu corpo e saltando de costas para a rua. A mulher logicamente faleceu, mas a criança chegou ao solo intacta devido ao corpo da mãe ter amparado sua queda.

A prateleira presa à parede equivalia ao andar de um arranha-céu, e o grande problema de Sérgio era atingir o chão sem virar patê. Lançou diversos olhares às action figures das Sailors, imaginando se seu plano encontraria sucesso, visto não haver possibilidade de segunda chance...

OK, a ideia consistia em apanhar uma delas, deslocá-la até a borda da estante e saltar sobre suas costas, usando-a de amparo para não se ferir – ou pelo menos não tão gravemente – ao final da queda. Claro, o esquema trazia inúmeras dúvidas: Sérgio não era pequeno como um bebê em comparação à boneca, somente poucos centímetros mais baixo. E "surfar deitado" na figure tal qual uma prancha poderia não ter qualquer efeito prático: o impacto dela contra o assoalho passaria também a ele, quebrando-o da mesma forma...

Ou melhor, talvez quebrando apenas a si, já que testemunhara aquelas figures despencarem da prateleira – para desespero de Eduarda – algumas vezes, e mal sofriam qualquer estrago. Eram feitas de plástico tipo PVC, e apesar de seus membros articulados saírem facilmente, não era tarefa das mais simples rompê-los. Ele, pelo contrário, era constituído de carne e osso; e jamais imaginara que em algum ponto de sua vida consideraria aquilo uma desvantagem.

Poderia haver dano maior à action figure? Sim. Mesmo se sobrevivesse, Duda descontaria nele tanto por ter tentado fugir quanto danificado uma peça de sua coleção no processo? Com certeza. Era tudo ou nada, todavia – como bem lembrava o estômago torturando-o numa fome nunca antes sentida. A namorada já demonstrara claros impulsos homicidas; e se morrer parecia questão de tempo, preferia fazê-lo lutando para se salvar...

Restava escolher uma boneca.

Não precisou pensar muito para decidir-se pela Sailor Marte, a mais recente comprada e que iniciara todo aquele tormento, embora mantivesse aparência tão inocente com seu cabelinho preto e saia vermelha.

Desajeitado, Sérgio puxou-a do meio das demais figures pelos braços enluvados, mais parecendo um funcionário de loja de roupas ajeitando manequins – com a diferença de fazê-lo pelado. Isso geraria a impressão, a um espectador desinformado, de tratar-se de um tarado querendo satisfazer suas vontades com as bonecas, algo até imaginado pelo nerd na tarde anterior devido ao seu novo tamanho e que baniu da mente com a mesma veemência.

Sentindo imensa raiva, tanto por Eduarda quanto pela situação, arrastou a figure até a borda da estante, com certa dificuldade devido a não mover suas articulações e acabar conduzindo-a feita uma tábua de plástico balançando para lá e para cá, perdendo o equilíbrio devido aos saltinhos dos sapatos em miniatura.

Só espero que, ao cair, também me sirva como tábua...

Chegando à beirada, constatar novamente a altura da prateleira em relação ao chão causou vertigem em Sérgio. Evitando chegar muito perto, e muito menos olhar diretamente ao assoalho, pensou não só duas, mas quinhentas vezes antes de prosseguir com o plano. Suas perspectivas de vida haviam se reduzido drasticamente nas últimas vinte e quatro horas, junto com seu tamanho: tornar-se escravo e saco de pancadas da namorada gigante até sua ira liquidá-lo, ou morrer tentando escapar de seu controle – somente para ter outro tipo de existência limitada e difícil, caso sobrevivesse, em outro lugar.

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⏰ Última atualização: Jul 29, 2019 ⏰

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