O frio a atingi-lo ao ter removido o cobertor fez com que, ainda de olhos fechados, estendesse as mãos tentando apanhar a manta. Os dedos nada pegaram, porém; e o impulso seguinte – abrir os olhos – revelou o enorme rosto de Eduarda contemplando-o de frente à estante.
Sérgio retraiu-se sentado, tanto de susto quanto pela vergonha em ter o pênis duro, comum problema masculino ao acordar. Não queria que ela achasse ficar excitado em ser desperto daquela maneira, ainda mais usando uma mão para agitar a flanela azul, recém-puxada de cima de si, a uma altura superior à que ele conseguiria alcançar.
Nem sequer cogitou responder à provocação. Ficou de pé, na pouca dignidade que lhe restava, e cruzou os braços. A face da namorada se fechou – e sim, agora ele podia mesmo dizer sentir medo.
– Bom dia, insignificante!
– Um a menos até minha morte, se depender de você? Preciso comer, Duda! E tomar água, ir ao banheiro...
– Chegou a essa situação por nunca prestar atenção aos sinais à sua volta...
Apontando com o queixo à direita da prateleira, Eduarda fez Sérgio virar-se. Notou que as bonecas das Sailor Moons haviam sido removidas todas ao lado oposto, ficando mais próximas e até espremidas umas às outras, enquanto a área liberada apresentava agora a mesma saboneteira na qual tomara banho no dia anterior, contendo algum líquido e sabão. Junto a ela havia um pires de porcelana com lascas de biscoitos – que, mesmo trituradas, eram do tamanho de fatias de bolo ao nerd – e duas tampinhas de garrafas de refrigerante: uma preenchida com leite, a outra com água. Imaginou se alguma seria a mesma na qual tentara tomar Coca, mas a humilhação passada deu lugar ao contentamento quando viu suas roupas, incluindo a cueca, limpas e relativamente secas estendidas à beirada da estante.
– Faça suas necessidades na saboneteira, que lavarei ao final do dia! – a giganta instruiu, o olhar atento demonstrando também severidade. – Nem pense em se aproximar das minhas figures sujo de bosta, que o arremessarei pela janela! Acho que aquela comida ali deve dar para café e almoço. Queria ficar aqui para vê-lo se sujar de novo tentando beber dessas tampas, mas você não vai poder mais trabalhar com design aos infelizes dos seus clientes e tenho de sustentar a casa...
O tom de Duda era áspero, porém todos aqueles cuidados... O pensamento de Sérgio durante a madrugada se confirmava? Ela realmente se importava consigo, a ponto de fingir casca grossa, e na prática acarinhá-lo na palma de sua mão?
Olhou então para cima da cama de casal... e os vários sacos de lixo pretos distribuídos sobre ela, pontas amarradas, provocaram gelo em sua espinha. A tranquilidade durara pouco.
– Duda, o que significa isso? – apontou um dos minúsculos braços ao colchão, feito um rei, do alto de sua torre, testemunhando o reino queimar.
A namorada afastou-se da prateleira, as vibrações de seus passos descalços subindo pela parede e chegando até a tábua mesmo com a considerável altura do chão. Abrindo os braços na direção dos sacos e rindo, esclareceu:
– Percebi que este quarto é pequeno demais para nós dois... mesmo nesse seu estado! Então, como já não vai mais usar a cama, resolvi fazer uma limpa também no guarda-roupa, na cômoda... Suas camisetas geek, DVDs de filmes, aqueles livrões de capa dura de RPG... Está muito pequenininho para usar tudo isso, não é? Vou jogar fora!
Novamente tomado pela terrível falta de ar com que já estava se acostumando, Sérgio caiu de joelhos, mãos unidas e erguidas em posição de súplica.
– NÃO, por favor! – balançou os punhos, ao mesmo tempo em que apontava aos recipientes plásticos. – A coleção do Star Wars, meus livros do D&D... Por favor, Duda, não faz isso...
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Meu Amor na Estante
RomanceSérgio e Eduarda eram um casal feliz. Ele, um nerd, fã de cinema americano e games. Ela, otome, apreciadora de mangás, animes e... action figures. Quem diria que esses simples bonecos se tornariam ponto de atrito tão intenso entre os dois, abalando...