Sérgio distraía-se no videogame – ou melhor, começava a se irritar, derrotado na partida online por pivetes de quem teria idade para ser pai – quando inesperadamente a campainha tocou. Abandonou o jogo, ansioso quanto a arrumar a bagunça no apartamento, a caixa de pizza contendo farelos e queijo seco fazendo companhia às duas latas de Coca vazias ao pé do sofá. Talvez fosse sua mãe. Ou o maldito Daniel, vindo disputar a partida presencial de Mortal Kombat que vivia prometendo.
Ao espiar pelo olho mágico, Sérgio gelou – ou melhor, quase caiu para trás – quando se deparou com Eduarda.
Não esperava que ela voltasse tão cedo; e ainda por cima anunciara sua chegada, não apenas usando a chave para entrar e pronto. Estaria disposta a conversar? Resolver seu desentendimento civilizadamente?
Esperançoso, e aliviado por voltar a ter alguém com quem dividir os afazeres da cozinha – vejam bem, dividir, e ainda havia quem o chamasse de machista! – ao invés de continuar pedindo comida fora, Sérgio destrancou a porta, abrindo-a devagar.
Eduarda não o atacou com um Hadouken, muito menos repetiu o chute em suas partes baixas, e ele não sabia bem se isso o satisfazia ou desapontava. Encarando-o com suas íris esverdeadas, a face tranquila, embora carregada de algum tipo de determinação, a namorada apenas perguntou:
– Posso entrar?
Bufando, Sérgio liberou passagem.
A moça prosseguiu, permanecendo impassível. Não demonstrou incômodo pelos restos de comida no chão, nem pelo aspecto largado do parceiro – ele não se barbeava há dias, as peças de roupa fedendo devido aos horários de banho desencontrados. Continuou de pé, encarando a TV ligada, depois uma parede...
– Quer sentar? – ficando preocupado, o namorado apontou o sofá.
Eduarda acomodou-se no móvel sem cerimônia.
– Olhe, eu sei que precisamos conversar... – ele iniciou desconcertado, olhando para os próprios pés de Havaianas.
– Não quero transformar isto numa DR, por incrível que pareça! – Eduarda roubou-lhe a palavra, e ele não negou sentir-se agradecido. – Estive exagerando, sim, com meus gastos em action figures. Todos nós temos direito a hobbies, porém a quantia que investi foi um tanto... alta. Poderia, sim, completar minhas coleções, mas com compras mais espaçadas. Uma por mês, quem sabe. Uma a cada dois meses. É preciso poupar ao nosso... casamento.
Sérgio não acreditava no que ouvia. Seria alguma espécie de feitiço? Os anjos nerds tinham escutado suas preces, e agora as atendiam colocando um pouco de senso na cabeça da namorada? Como aquilo podia se resolver, assim, tão facilmente? Talvez devido a ter se frustrado tanto com garotas antes de conhecer Eduarda, entre foras e relacionamentos-relâmpago, o universo mantinha o equilíbrio ao oferecer-lhe reparação rápida em brigas como aquela. "Perfeitamente equilibrado..." – como diria Thanos. E não precisara ceder nada para aquele retorno!
– Você está falando sério? – ele ainda duvidada. – Está se sentindo bem?
– Claro! – ela sorriu meiga, embora um pouco cansada. – Eu te amo, seu cabeça dura! E não quero que essas coisas trinquem nosso relacionamento quando estamos tão perto de torná-lo definitivo. Prometo maneirar nos gastos. Poderia devolver o meu cartão?
Festejando por dentro e sentindo-se leve como uma nuvem, Sérgio deu as costas à namorada e rumou ao armário onde, dentro de uma gaveta trancada, mantinha o cartão de crédito. Apanhou o chaveiro do apartamento de um bolso, destrancando o esconderijo e apanhando o retângulo de plástico entre dois dedos. Virando-se de volta, estendeu-o a Eduarda, novamente de pé, que o pegou e enfiou rapidamente num bolso, em contraste com a calma mostrada até então... Mas o receio do namorado diluiu-se ao perceber que a parceira segurava algo na outra mão.
– O que é isso? – indagou ansioso, o formato do objeto se mostrando familiar.
– Oh, é um presente que comprei, para selar nossa reconciliação! Um sabre de luz que reproduz o laser dos filmes com um holograma! – ela riu, exibindo melhor o cilindro metálico em seu punho, realmente parecido com o cabo de uma das famosas espadas Jedi. – Até faz o mesmo barulho! Quer que eu ligue para você ver?
– Não pode, estou desarmado! – ele brincou, fazendo menção de apanhar uma vassoura encostada a uma parede para fazer a vez de sabre adversário.
– Calma, seu bobo! Só vou acionar uma vez para que o veja funcionando, depois a gente luta!
Sérgio ergueu os braços em excitação, ao mesmo tempo em que Eduarda pressionava um botão no bastão – não muito parecido, todavia, com o interruptor dos sabres oficiais... mas ele sequer teve tempo de levar adiante a comparação, estremecido pela onda azul, assemelhando-se a uma rede de plasma, lançada num estalo contra si.
– Que isso? – foi o que conseguiu gritar.
A descarga atingiu-o eriçando cada pelo de seu corpo, deixando braços e pernas dormentes, a mente sem ação. No segundo seguinte, viu-se tomado de inexplicável vertigem, a visão desfocada e puxada repentinamente do ângulo em que deveria estar, simultânea ao estômago gelando e se deslocando no interior da barriga, numa sensação idêntica à gerada pelo descer de um elevador, mas potencializada a mil. O mundo girou, como se Sérgio houvesse se transformado em broca e perfurasse o chão, porém sem nele adentrar... E, ao término do prolongado choque, tinha o senso de equilíbrio em desordem e o impulso de botar para fora toda a comida ainda em si, incluindo as pizzas do almoço.
Por pouco não caindo sentado, conseguiu firmar as pernas, centralizar o tronco, e recuperar completo controle sobre os membros e sentidos. A visão, recobrando o foco, estava voltada ao alto...
Quando notou o teto muito acima de onde deveria estar.
Mas que diabos?
Do topo da sala, o olhar buscou descer lentamente ao nível do chão... para, ainda no início do trajeto, deter-se na figura de inconcebíveis proporções bem diante de si, imóvel, olhando-o fixamente com a cabeça virada para baixo.
Eduarda – estando agora da altura do prédio em que moravam.
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Meu Amor na Estante
RomanceSérgio e Eduarda eram um casal feliz. Ele, um nerd, fã de cinema americano e games. Ela, otome, apreciadora de mangás, animes e... action figures. Quem diria que esses simples bonecos se tornariam ponto de atrito tão intenso entre os dois, abalando...