Ato I: A Vida Como Ela Era

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Nunca em minha vida pensei que poderia viver em uma época que teríamos que nos manter escondidos de uma espécie desconhecida para não termos que ser devorados. E agora estou aqui... Tremendo, trepidando, sussurrando, chacoalhando e tentando se mover o mais vagarosamente possível para não ser encontrado por uma daquelas criaturas inomináveis e horrendas. Que horror! O medo é insuportável! Palpita o coração como se uma bomba fosse explodir dentro de si repetidamente! Eu gostaria que tudo isto acabasse... Como eu gostaria que tudo isto acabasse...

Muitas foram as suas vítimas e presenciei pessoas sendo atacadas e comidas da noite para o dia sem ao menos ter a capacidade de socorrê-las. No passado, eu era aquele que tinha o ofício de salvar vidas em troca de um salário digno e honrado. Agora sou um covarde que se aproveita de suas vítimas para viver mais um dia. Ó meu querido Deus! Como isso foi ocorrer? O que motivou todo este sofrimento para nós, seres humanos? Seria esse o pecado que a humanidade tem de pagar? É um castigo divino, ao qual enviou seus asseclas para nos derrubar e torturar nossas almas neste inferno tortuoso? Não... A minha fé não pode ser abalada! Minha família precisa de mim... Seja lá onde eles estiverem... Estou sozinho, em trapos a incontáveis dias e não sei quantos se passaram. O meu rosto está poroso e peludo como um urso, além de poluído e sem a possibilidade de me adequar ao charme e à luxúria que um belo aparelho de barbear me proporcionaria porque posso sentir minha barba estorcegar e minha pele chamuscar como se milhares de pontos ardidos em brasa tocassem minha face. A minha roupa está encardida, rasgada e suja. Seria óbvio, pois tudo ocorreu quando estava no metrô e há tempos estava saindo do quartel. Eu usava aquilo que já foi chamado de roupa um dia, uma camisa social longa de executivo na cor azul marinho; uma calça jeans azul clara. Uma camiseta branca para ser mais exato; um sapato em tom ébano, um bem luxuoso daquele que minha esposa adorava. É... Adora se ainda estiver viva por ai com minha meiga criança... Meu doce Thomás... Sua face rosada e com sardas legítimas como a mãe. Minha Júlia! Onde será que está? Eu sinto tanto a sua falta! Eu gostaria de ver seus olhos verdes à luz do luar novamente como na nossa primeira vez. Aquela após nossa noite de núpcias, aquela ao qual pude ter você e de ti vir o presente mais lindo que Deus pudera me dar... Ainda tenho a minha crença no Deus poderoso de que vou encontrar vocês vivos, protegê-los com meu corpo e dar aquilo que um pai e esposo pode dar a sua família... Segurança.

Eu não como bem há dias. O meu desjejum fora uma lata de sardinha encontrada ao lado de um corpo de uma criança, já em putrefação, ao qual apresentava o período cromático. Dava para se perceber que fora em ao menos uns quatro dias. Depois de ver tantos mortos, eu já não sentia tristeza pelos que já foram, mas temia pelos que estão vivos como eu. Mal consigo dormir e meus dentes chegam a doer pelo frio da noite e pelo descuido. Eu tenho que encontrar um local mais fechado possível para ter um bom sono, aliás, eu preciso sonhar! Eu tenho pesadelos em poucos minutos. Não sei quando verei outra daquelas criaturas. Mal sei como descrevê-las: Nunca vi um par de fileiras duplas de dentes formando um circulo como aquele em minha vida em animal algum; sequer vi um quadrúpede como tamanha velocidade e, pior, com um bote voraz; suas garras e presas fatiam a carne como se fosse uma navalha cortando manteiga; eles parecem ter um conjunto de olhos daquilo que parece ser uma cara, mas não parece ser qualquer besta que já tenha visto em minha vida, sequer no cinema com minha querida Júlia. É bruto como um leão e rápido como um leopardo! As suas vítimas são devoradas em poucos minutos!

Não pude contar a quanto tempo perambulo por esta cidade, mas sei que não seria inteligente sair dela. Eu ainda preciso de um abrigo para me esconder, me limpar, roupas para trocar e mantimentos para as minhas necessidades básicas. Ainda não tive coragem de entrar em uma residência após chegar naquele hotel e ver aquele monstro atacar aquele simples rapaz. Ele não tinha que encará-lo para mostrar sua bravura! Ele sequer poderia me negar a comida que tinha, pois havia muita! Mas, por se sentir útil para os demais, ele teve que se oferecer para a morte. E eu sequer levantei a minha mão, já bem delgada e fraca querendo apenas aquele frango que era repartido entre todos daquele lugar. No final, eu obtive parte daquela iguaria e ele teve o seu infeliz resultado: Uma morte trágica! Talvez, os outros também tiveram... Um colega de trabalho uma vez me disse a seguinte frase:

Sussuro O PrelúdioOnde histórias criam vida. Descubra agora