Capítulo III

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Tive insônia nessa noite, então decidi me arrumar um pouco mais cedo e ir para a faculdade. Ao chegar na parada encontrei o mesmo senhor que estava na semana passada, no meu primeiro dia.

--- Ei mocinha, tome cuidado, essa região é perigosa para uma menina andar sozinha.

--- Vou tomar, não se preocupe, eu sei me cuidar.

--- É bom mesmo que saiba porque nunca se sabe quem mora na porta ao lado.

Esse velho devia estar delirando ou algo do tipo. Que o bairro era esquisito? Ok, ele era, mas eu sempre sou muito cautelosa quando saio de casa, mas sobre o vizinho, eu não tinha porque me preocupar, ao julgar pela crosta de poeira da kitnet ao lado da minha, não habitava alguém lá por um bom período de tempo. Subi no ônibus quase vazio àquela hora do dia e fui a biblioteca.

Ao contrário do refeitório, com tudo muito grande e espaçado, a biblioteca cheirava a madeira, com um pé direito baixo e livros em todas as paredes, a mesa da bibliotecária ficava ao centro e no canto esquerdo havia uma escada circular que levava ao andar de cima. Lá, havia livros na parede também, mas ao centro havia várias mesas de madeira. Sentei em uma delas com o livro que havia escolhido. Nem vi o tempo passar enquanto estudava a Revolução Russa, fechei o livro e fiz meu cadastro para poder levá-lo para casa e fui para o refeitório.

Ele não estava vazio como na primeira vez que fui lá. Havia MUITA gente lá dentro, as grandes mesas estavam completamente lotadas e o gigante refeitório de ontem não parecia mais tão grande assim. Assim que escolhi meu almoço vi uma mesa que não tinha muita gente e me sentei. Olhei para a mesa que antes, havia me encontrado com Lílian e Jonas.

Mas ao invés disso encontrei um grupo de 4 pessoas eles tinham grandes folhas espalhadas na mesa a garota sentada de frente pra mim tinha seus cabelos crespos cortados num corte bem curto e seus lábios pintados de escarlate estavam contraídos tamanha concentração que ela coloria as grandes folhas na mesa, um cara usava suspensórios vermelhos contrastando com sua camisa branca estava em pé conversando com um outro que tinha uma barba de fazer inveja à muitos caras por aí, eles sorriam e seus olhos brilhavam de felicidade enquanto seus rostos se aproximavam para um beijo,o quarto cara, que sentava de costas pra mim deu um tapa na cabeça de um deles, não dava para ouvir, mas do jeito que ele apontou para as folhas fez com que os dois pegassem lápis e começassem a rabiscar, e ele voltou a inclinar a cabeça para o que ele estava fazendo. Seus largos ombros estavam tensos enquanto desenhava, ele tinha o braço esquerdo esticado no banco, marcado por negras tatuagens, que de longe não dava para decifrar o que tinha desenhado, ele também tinha cabelos levemente ondulados, loiros e compridos, quase no final do pescoço, como se não tivesse tempo para ir cortá-los.

Percebi que já estava quase atrasada para o primeiro horário. Engoli o resto do almoço e corri para o meu prédio. Todos já estavam na sala, exceto eu e a professora. Lílian acenou para mim e eu sentei na cadeira ao seu lado.

--- Não era você que vinha pra faculdade cedo, né Sara?

--- Perdi a hora no refeitório.

--- Não me diga que estava apreciando a maravilhosa comida de lá. O lanche é super gostoso, mas eu realmente não sei o que eles fazem com as refeições. Da próxima vez que tiver que almoçar aqui, vai lá pra casa, é a quatro quarteirões daqui.

--- SILÊNCIO TURMA...

E assim acaba nossa conversa, com a professora com a voz mais enfadonha do mundo pedindo silêncio.

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A semana passou depressa, foram muitos trabalhos, passei mais tempo na biblioteca do que em casa, geralmente fazia meus trabalhos apenas com Lílian, mas o professor havia passado um trabalho para um grupo de cinco. Havíamos feito tudo muito rápido e estávamos exaustos deitados por cima dos livros.

--- Ei galera vamos comemorar. Foi trabalho pesado isso daqui. Hoje é aniversário da cidade e a galera vai acender uma fogueira no campo de futebol pra ver os fogos. Vocês topam?

Karla disse isso enquanto arrumava seu curto cabelo azul que estava sempre com uma aparência que ela tinha acabado de acordar. Diversos "eu topo" saíram da mesa seguido de um "vou chamar Jonas " vindo de Lílian.

--- Ah, bora Sara. Você é novata, vai ser uma ótima oportunidade de conhecer o pessoal dos outros cursos.

--- Tá ok, então vamos.

Lotamos o carro de Karla e fomos para festa do outro lado do campus. Já era noite e tudo estava muito mal iluminado. Lílian viu Jonas e me puxou ao encontro dele que já estava nos esperando com dois copos de cerveja na mão, me entregou uma e puxou sua namorada para um longo beijo apaixonado. Desviei o olhar procurando algo de interessante na multidão. Haviam pessoas bebendo e conversando, alguns casais abraçados e garotas rindo de piadas sem graça de caras bonitos. Um cara estava numa parte mais escura da festa, a fumaça pairava acima de sua cabeça enquanto as cinzas do cigarro caíam em sua espessa barba, que contrastava com seus cabelos raspados.

Desviei o olhar e quando percebi o casal não estava mais na minha frente. Rodei um pouco entre as pessoas a procura deles quando um cara gritou que os fogos começariam em 15 minutos, enchi meu copo com mais cerveja e me sentei num banco um pouco mais afastado para esperar por eles. Do banco eu conseguia ter uma boa visão do grupo a minha frente, mas como estava escuro eles não podiam me ver.

Vi a garota de cabelos crespos do refeitório dançando com o loiro dos cabelos compridos. Era uma coisa meio desajeitada, ele tentava ensinar uns passos pra ela, o que não funcionava de jeito nenhum. Eles pareciam um casal feliz, como se nada afetasse a bolha que eles construíram ao redor deles.

A vida gostava mesmo de pregar peças em mim, uma garota que só soube viver em relacionamentos conturbados viver rodeada de casais de comercial de margarina.

Eles pararam de "dançar" e foram buscar por bebidas e eu percebi. Era ele. Já fazia um ano e meio que eu não o via, sequer tinha notícias dele. Um ano e meio que eu pensava que nunca mais iria sentir o que eu senti quando ele foi embora. Um ano e meio que ele sequer ligava para a vida que tinha antes de vir pra cá.

Ele esticou seu copo para encher no barril e eu pude ver. As tatuagens que eu não tinha conseguido decifrar antes, eram flores, dogwoods para ser mais específica, as mesmas que eu tinha tatuada abaixo das minhas clavículas...

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