Capítulo X

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Eu sabia que esse momento ia chegar, ele também, mas nós estávamos nos evitando desde que eu tinha me mudado para o apartamento e isso já durava duas semanas e meia. Eu sempre ia de manhã para a faculdade, mesmo que não tivesse turno duplo, ficava na biblioteca estudando a manhã toda e nos fins de semana, quando Adam não tinha trabalhos para fazer na casa de seus amigos ou festas para ir eu ficava com Jonas e Lílian. As noites eram o único momento que nós realmente nos sentávamos juntos para comer. E durava bem pouco porque eu nem precisava mentir que estava cansada com essa minha nova rotina -exaustiva- de estudos. 

Mas esse fim de semana não tinha nenhum trabalho para ocupar a mente de Adam e o casal que me acolhia em minhas fugas no fim de semana iria passar os dois dias na casa dos pais de Jonas e eu me sentia totalmente perdida, porque estava, como uma criança, evitando ter conversas com meu colega de quarto, ou no caso, apartamento. 

Levantei às nove, dando graças por ter sido a primeira a acordar, fiz panquecas e coloquei o café no fogo, tomei café sozinha e em silêncio, tentando ao máximo me passar como um fantasma e não acordar ninguém, o que deu muito certo, a princípio, pois quando estava perdida em meus pensamentos escutei apenas meu nome sendo gritado bem próximo do meu ouvido. Com o susto derrubei todo meu café em cima da mesa e me virei para dar um tapa no desgraçado que tinha me assustado antes mesmo de terminar meu café da manhã. E ele se curvava de tanto rir.

--- Tua vida tá tão sem graça que dá um susto nos outros já é motivo de tanto riso?

--- Nos outros não, ninguém, ninguém, toma um susto tão bem como você.

--- Quer levar outro tapa?

--- Não, agora seu tapa realmente dói. Andou malhando?

--- A prática leva a perfeição, meu querido.

Ele riu pelo nariz, lembrando-se que a maior parte dá prática ocorreu nele mesmo. Pegou uma xícara e se sentou na cadeira na minha frente, comemos em silêncio, em parte eu o encarava e na outra eu desviava meu olhar quando o dele vinha em minha direção, terminei de comer bem rápido e me virei para ir para a pia, arrumar a bagunça que eu tinha feito, senti seu olhar em mim durante o pequeno trajeto. Meu pijama velho já estava ficando pequeno, mas não sentia seus olhos mirarem minha bunda, na verdade na hora que isso me passou pela cabeça, tive a plena certeza que ele olhava para a macha roxa que ganhei na queda no dia do ataque de Darcy que teimava em não ir embora, mesmo com o tanto de pomada que eu passava diariamente.

--- Acho que você deveria fazer uma queixa na delegacia.

--- Não acho que seja uma boa ideia... Você sabe, os boatos que rodam no campus não são muito encorajadores.

--- Mesmo assim, você não tá mais sozinha nessa. Eu posso te proteger se ele fizer uma retaliação.

--- Ah por favor, não seja ingênuo.--- falei me virando em sua direção e elevando um pouco meu tom de voz pelo ódio que ainda sentia daquele que me atacara naquela noite.--- O cara é metido com drogas, praticamente manda no reitor, suspeito de assassinato e sabe-se lá mais o quê. E outra eu não posso provar nada, está muito tarde pra fazer um corpo de delito, ainda mais que só estávamos nós três naquela rua.

--- Tudo bem, então. Eu não vou te forçar a nada. --- ele falou enquanto limpava o café derramado na mesa e tirava tudo de lá de cima e eu voltei a atenção para a louça que estava lavando. Até que ele me estende uma pomada e continua.--- Essa aqui é bem forte, talvez amanhã a mancha já tenha sumido, usei na época que torci meu tornozelo enquanto jogava basquete.

--- Você ainda continua jogando aqui?--- perguntei com uma súbita curiosidade.

--- Não no time. A faculdade me tira muito tempo, estou fazendo umas cadeiras extras de paisagismo.

--- Fico tão feliz por você ter conseguido entrar no teu curso dos sonhos, sempre falei que com o teu talento ia acabar conseguindo uma bolsa. --- falei bagunçando seus cabelos, enquanto meus olhos brilhavam de orgulho do meu amigo.

--- Jura? Não sabia se você pensava assim, as coisas ficaram bem... confusas na última conversa que tivemos em Allentown.

--- Você sabe muito bem que não foi por isso. --- ele abaixou o seu olhar o silêncio constrangedor começou a pairar sobre nós.

--- Mas me conta mais da sua vida, desde que foi embora. --- falei isso em uma respirada só, querendo não deixar o assunto morrer e ao mesmo tempo incomodada com o assunto que estava jogando para debaixo do tapete.

Ele pareceu contente pela mudança de assunto e me falou das coisas que já tinha passado na universidade, as partes boas, os perrengues, falou da saudade que sentia de Mary e do que tinha deixado em Allentown. Falou dos seus planos para uma especialização e como estava estudando para conseguir uma vaga em um dos estágios mais concorridos. Perguntou de mim. Falei dos novos amigos que tinha feito, de como a nova universidade era mais puxada, falei dos meus pais e de como havia sido monótona naquela pequena cidade depois que ele foi embora, claro, deixando de fora a parte "depois que ele foi embora". Nós falamos com naturalidade, coisa que não fazíamos desde o dia do ataque, mas sem todo aquele clima ruim e foi uma sensação melhor do que eu imaginava, não que eu passasse muito tempo pensando nisso, mas era bom ter de volta o amigo que eu mais amava nesse mundo.

--- Sabe, Mary disse uma vez que uma amizade como a nossa era daquelas que durariam até nós ficarmos velhinhos e sentar nos bancos do parque pra jogar comida pros pombos. Por um período pensei que a previsão dela estava errada, mas...

--- Parece que nada mudou, né? --- ele assentiu com a cabeça--- mas qualquer dia vou até Mary para fazer outras previsões pra minha vida.

--- Tá a fim de arrumar essa zona comigo? Você pode escolher a música, ainda gosta de The Strokes?

--- Óbvio, bom gosto não se acaba com o tempo.

Então fizemos todos os trabalhos domésticos, cantando, dançando e  relembrando histórias da época da nossa adolescência, ok... fizemos mais os três últimos, por isso terminamos já estava escurecendo e resolvemos pedir uma pizza e ver um filme. Sentei e ele se deitou na minha perna, do mesmo jeito que costumávamos fazer antigamente.

--- Você ainda lembra disso?

--- Tem coisas que a gente não consegue esquecer. --- falou com uma certa melancolia na voz.

--- Você tá diferente.

--- Um diferente bom? Eu espero.

--- Parece que a maturidade chega pra todos, não é mesmo?

Adam sorriu sem mostrar os dentes e passou as mão no lugar que meus cabelos costumavam cair.

--- Sinto falta dele, do resto do cabelo, cortei por causa de um namorado. Me arrependo demais.

--- Do namorado ou do cabelo?

--- Dos dois, mas principalmente do namorado.

Rimos e tentamos assistir o filme, pois demos mais cochiladas do que realmente prestando atenção no filme. 

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