Dois

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Foram horas de tortura, horas de dor e agonia. Eu nunca passei tanta vergonha em todos os meus 20 anos de existência. Aquelas mulheres nem me deram chance de reagir, simplesmente me empurraram até o banheiro e me jogaram dentro da banheira cheia de água. E lavaram tudo. Eu disse (gritei várias vezes, na verdade) que eu sabia me banhar sozinha, mas aquelas sádicas alegaram que, pelo estado em que eu estava, eu definitivamente não sabia fazer tal coisa.

E quando eu estava pronta, quando tinham finalmente acabado de me lavar, me pentear, me pintar, me vestir, me adornar; quando os retoques finais acabaram, as cinco formaram um círculo ao meu redor para analisar o trabalho que tinham feito. A satisfação em seus rostos, o brilho nos olhos e os sorrisos, todos voltados para mim... Era intimidador.

--- Você é tão linda! --- a mulher alegre de antes estava saltitante. --- Nunca vi mulher mais linda!

--- Parece até uma das musas lindas das histórias antigas. --- uma delas comentou, igualmente animada.

--- Sim! Você poderia ganhar o coração do príncipe com esse rosto!

Todas assentiram. A loira que fungara na minha direção estava agora com as mãos no rosto, os olhos subindo e descendo por meu corpo diversas vezes, embasbacada. Então o brilho dos olhos se tornou opaco.

--- Uma beleza tão rara... desperdiçada com aqueles animais. --- ela sussurrou, e toda a euforia foi substituída por tensão. A mais velha olhou de esguelha pra ela mas não disse nada. Ao invés disso, me observou com aqueles olhos penetrantes e inclinou a cabeça para a direita, como se estivesse vendo algo que nenhuma das outras conseguiram ver. Aquilo me deixou desconfortável e eu mudei o peso do corpo de uma perna para a outra.

Uma trombeta soou ao longe e eu afastei o tremor que ameaçou percorrer meu corpo.

--- Terminamos bem na hora. --- a mais velha disse. --- Eles chegaram.

--- Temos que ir. --- a loira sussurrou e as outras assentiram, seguindo para a porta sem sequer dirigir um último olhar para mim. Porém a mais velha parou com a mão na maçaneta e Se virou.

--- Eu sinto... Sinto que você é diferente das outras. Não fisicamente, mas... por dentro. Como se... --- ela franziu a testa em busca das palavras certas, mas estalou a língua e desistiu. --- Deixe para lá. Alguém será enviado para te buscar em breve. Não saia daqui. --- Antes de fechar a porta, eu a ouvi sussurrar: --- Que os deuses estejam com você.

E se foi.

Só então eu tive coragem de ir até o banheiro e me olhar no espelho que cobria uma parede inteira do cômodo. Eu me assustei com o que o vi.

Eu nunca me senti tão bela. As horas de tortura valeram a pena.

De alguma forma as mulheres conseguiram domar meu cabelo, e pela primeira vez os cachos estavam comportados, definidos, macios e brilhosos. Elas haviam cortado um pouco ele para diminuir o volume, mas não fizeram nenhum penteado --- segundo elas, não seria necessário. Estava solto e escorria até o meio das minhas costas como uma castacata, completamente livres.

Elas haviam contornado meus olhos como uma tinta preta (que eu não me importei em saber como se chamava) que realçava a cor de meus olhos (que agora resolveram ser verde). Também pintaram minha boca com batom da cor de vinho que fazia
meus dentes parecerem mais brancos do que realmente eram. Minha pele estava macia e brilhava, exalando o perfume do óleo de lavanda que esfregaram em mim. Minhas unhas também foram tratadas e pintadas de um azul tão escuro que parecia preto.

Porém o que mais me impressionou foi o vestido que me enfiaram dentro. Era da mesma cor que as minhas unhas foram pintadas, e tão justo que sequer uma curva do meu corpo passava despercebida pelo tecido macio, confortável e fosco. O decote deixava a minha clavícula e parte dos meus seios a mostra e uma fenda se abria na saia, deixando minha perna direita exposta. Era divino. A única coisa que eu não gostei foram as sandálias de salto que enfiaram nos meus pés. Eram extremamente desconfortáveis. Andar sobre eles doía, mas as mulheres me ameaçaram dizendo que, se eu tirasse, elas pediriam aos deuses para que me amaldiçoassem e fizessem meus pés caírem. Como os deuses nunca foram com a minha cara, achei melhor não desafiá-las.

A trombeta soou pela terceira vez. Uma nota mais aguda que a anterior, mais alta. Não demoraria muito para que eu fosse levada.

Sozinha naquele banheiro, naquele quarto, eu estava prestes a me render ao medo, minha pele estava arrepiada e minhas mãos tremiam. Eu encarei meu reflexo no espelho novamente, e o que vi em meus olhos, em meu rosto... Eu nunca seria capaz de honrar meu nome se continuasse com aquela expressão. Pelo contrário. Se meu pai me visse agora, tenho certeza que ele teria vergonha de mim. Aquilo não era ser forte. Aquilo não era honra.

--- Só você pode decidir o que te destrói. --- Eu comecei a recitar as palavras que me impediram de desabar até agora. --- É você que escolhe. Seu nome significa poder. Honre o nome que sua mãe lhe deu, e seja forte. 

Fechei os olhos, respirei lenta e profundamente e me encarei de novo.

--- Só você pode decidir o que te destrói. É você que escolhe. Seu nome significa poder. Honre o nome que sua mãe lhe deu e seja forte.

Fechei os olhos, respirei lenta e profundamente mais uma vez e me encarei. Repeti o mesmo processo mais uma vez. Duas. Repeti e repeti e repeti, até que as palavras penetraram em minha pele, em meu ser. Até que as palavras cobrissem meu coração acelerado e o acalmasse. Repeti até que o medo e a tristeza e o desespero estivessem tão contidos que não conseguissem mais invadir meus olhos, meu rosto. Repeti até que minhas mãos parassem de tremer. Repeti até conseguir acalmar a respiração. Repeti até conseguir ouvir o quarto toque da trombeta sem estremecer. Repeti até sentir a força daquelas palavras me invadirem e tomarem espaço.

E quando ouvi alguém bater na porta para me levar, eu estava calma. Fria.

Pronta.

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