Dois

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Todos estavam em luto. Além do luto, medo. Desespero. Olhavam para os lados enquanto sentavam nas poltronas de frente para o grande espelho. Não entendiam os motivos. Não conseguiam compreender os porquês. Como ela morreu? Por que ela? Tão cedo... Entender era praticamente impossível naquele momento. Todos tinham de ficar espertos. Astutos. Observando os arredores e se precavendo de qualquer perigo. Todos estremeciam.
— Eu precisava comer algo, mas não consigo. Não sabendo que um de nós está morto na varanda. — Ethan comenta após minutos silenciosos. — Além disso, esse silêncio me deixa mais tenso ainda.
— Eu vou preparar algo. Mesmo que não comamos agora. — George se dirige à cozinha.
— Tudo bem... Eu ajudo. — Penny se levanta.

Hunter e Ethan ficam no grande hall do espelho. Observam aquilo como um monumento renascentista. Procuram por cada detalhe. Era engraçado. O espelho agora tinha uma rachadura, mas permanecia firme na moldura. Não havia sequer um pedaço dele no chão. A rachadura era perfeita. Não tinha vão, era lisa, porém perceptivelmente profunda.
— Não consigo entender. — Hunter fala após minutos calado.
— Nem eu...
— Você também suspeita do George?
— George? Por que ele mataria a Hasten?!
— Era claro que ele não gostava da minha irmã. Às vezes ele gostaria de tirar concorrência, não sei...
— Eu não sei, ele não parece matar por nada. — Ethan diz isso, mas instantaneamente se lembra da voz com a mensagem de julgamento um tanto quanto estranha. — Mas, se bem que... Ele já matou uma pessoa. Aquela da família Hansell...
— Eu desconfio muito dele.
— Eu só não desconfio da Penny, porque eu estava com ela.
— Você desconfia de mim? Por que eu mataria minha irmã?!
— Não quis dizer isso. Quis dizer que só tenho certeza de que não foi ela. De resto, não posso afirmar nada.

Penny havia preparado um bolo, de receita especial da avó. Não sabia como tinha conseguido fazer alguma coisa naquela situação. O cheiro chegou no hall do espelho, levando Hunter e Ethan à cozinha. Lá, George repartia o bolo em quatro. Ethan pegou alguns pratos de porcelana na prateleira e separou quatro. Abrindo as gavetas, procurou por garfos pequenos, até que os encontrou. Colocou tudo sobre a grande mesa da sala de jantar, com espaço para mais de dez pessoas, utilizando apenas quatro dos lugares. Selecionou cuidadosamente os lugares em que colocava o prato, o garfo e as xícaras que Penny havia separado. Num bule, George havia preparado um chá de camomila. Era o melhor para a situação que passavam. Quando tudo estava sobre a mesa, começaram a se servir. Cada um pegou um pedaço do bolo, encheu sua própria xícara e comeu sem falar nada.

Já era noite, e os quatro arrastavam as camas pelos corredores. Temendo o mistério de Hasten, decidiram que o melhor a fazer seria juntar todas as camas em um quarto grande, para que estivessem juntos em qualquer ocasião de perigo. A cama de Penny foi colocada no meio, para que ficasse mais protegida. Ela ainda tremia. George decidiu ficar mais perto da porta. Hunter ficou com a cama a meio metro da janela, enquanto Ethan colocou a dele ao lado do armário. Dispostos dessa forma, todos tinham visão total do quarto. Ao apagarem as luzes, sabiam que não conseguiriam dormir, mas deitaram. O som das folhas das árvores tocando o chão nunca pareceram tão altos. O vento batendo nos galhos soltos davam a parecer que passos andavam pelo telhado. Os quatro se sentiam incomodados. Penny retornou a chorar, até sentir Ethan segurar sua mão.
— Calma. Vai dar tudo certo. Tá tudo bem.
George permanecia parado, a todo momento virado em direção à porta. Não conseguia desviar sua atenção dali. Hunter não estava onde seu corpo estava. Sua mente estava longe. Viajava ainda nas lembranças com Hasten. Recordava dos bons momentos. Não percebia as lágrimas escorrendo pelas bochechas e pingando no travesseiro. Não sentia nada. Dormiram.

O Sol iluminou o quarto pela janela. Todos acordaram praticamente juntos. Não sabiam como tinham dormido, tocavam em si mesmos para terem certeza de que estavam inteiros. Até então, estavam. George foi o primeiro a se levantar e molhar o rosto. Hunter então se levantou e fez o mesmo. Os dois esperavam enquanto Penny fazia seu ritual matinal no banheiro, e Ethan ainda não tinha forças para levantar. Com muita luta, foi se espreguiçando e se levantando aos poucos. Quanto Penny saiu do banheiro, se levantou por completo e fez o mesmo que George e Hunter. Juntos, saíram pela grande porta e se dirigiram à cozinha. O corredor nunca pareceu tão longo. Ao chegarem, Penny notou que havia algo errado.
— As louças. Nós não lavamos ontem. Ou alguém lavou?
Todos negaram.
— Pois bem, elas estão limpas e guardadas. — Penny prosseguiu o raciocínio. — Se há alguém nos vigiando e procurando nos matar, esse alguém não sabe se esconder bem!
— Penny, às vezes você mesma lavou e não se lembra. Todos estávamos gélidos com a situação ontem. — George disse.
— Eu tenho plena certeza que não lavei, e ninguém irá fazer com que eu mude de ideia!
Os três fizeram um “sim” com a cabeça, esclarecendo que não queriam discutir mais sobre o assunto.
— Eu estou morrendo de enxaqueca. Algum de vocês trouxe remédio? — George pergunta.
— Eu tenho um pouco de dipirona na minha mala. Pode pegar. — Hunter aponta para onde a tinha colocado.
— Certo, obrigado.
Penny fazia panquecas, enquanto Ethan espremia à mão algumas laranjas. George se dirigia à mala, procurando pelo remédio. Hunter, entretanto, analisava de perto o misterioso espelho rachado. Ainda não entendia o que havia acontecido. Não sabia como ficaria naquele lugar sabendo que sua irmã estava morta do outro lado da parede. Ele ainda não acreditava.

As panquecas estavam prontas, todos se sentaram. Não comeram. Num primeiro instante, apenas arrastavam os pedaços cortados de um lado para o outro do prato. Olhavam para os lados, sempre com medo. A qualquer momento poderiam morrer. Eles tinham certeza que o caso de Hasten não foi um acidente. Por algum motivo, sentiam isso. Alguém estava envolvido. Passaram a suspeitar uns dos outros. Olhavam olho a olho. Só não desconfiavam de Hunter, pois eram irmãos. Por momentos, se lembravam da voz com as sentenças criminais de cada um. Hasten, George e Hunter haviam matado. Penny e Ethan cometeram crimes menores. Teria isso alguma lógica?

Ao terminarem o café da manhã, se levantaram e se dirigiram ao quintal. Queriam respirar um pouco. Sentir a brisa do mar que os separava da civilização. George foi dar uma volta. Por cima das pedras, observava os prédios de longe. Conseguia sentir o cheiro do café de sua padaria matinal preferida. Em sua mente, processava tudo aquilo. Sentiu uma lágrima escorrendo, como se estivesse despejando suas esperanças. Sabia que não teria mais volta. E então caiu.

Penny e Ethan se balançavam nos brinquedos do quintal. Cabiam muito bem adultos. Foi a melhor forma que encontraram de arejar a cabeça de tudo aquilo. Para eles, aquilo era suficiente. Eles não tinham vínculo com Hasten. Mas Hunter tinha. E, naquele momento, tudo que ele conseguia fazer era ficar sentado observando as pequenas ondas. Ele não conseguia aceitar.
— Ethan, você não acha que o George está demorando?
— Creio que não, Penny. É bom caminhar um pouco. Ficar um pouco sozinho é necessário.
— Eu não sei... Depois de Hasten...
— Não se preocupe. Está tudo bem.
Continuaram se balançando. O vento batendo no rosto era reanimador. Hunter se aproximou e decidiu se balançar. Os três, alinhados, iam para frente e para trás, observando diferentes partes dos prédios do outro lado das águas. Nunca tinham visto sua cidade daquele modo. Era um ângulo único.

Passadas algumas horas, se lembraram de George. Perceberam que ele realmente não havia voltado. Entraram na casa, à sua procura, mas foi em vão. Ele não estava lá. Saíram, então, em direção às pedras. De longe, viram algo que parecia ser uma pessoa deitada. Mas não queriam acreditar. Receosos, não sabiam se chegavam perto ou não. Ethan foi. Ao se aproximar, caiu de joelhos e começou a chorar. Suas mãos tremiam enquanto seguravam cuidadosamente a cabeça do indivíduo. Ao virar, reconheceu plenamente a face de George. Não estava com um olhar assustado. Morreu tranquilo, sem nem mesmo saber que iria morrer. Ao retirar as mãos, Ethan sentiu o sangue. Por trás, podia ver o tiro certeiro. Apenas um, no meio da cabeça. Seus joelhos agora estavam manchados com o sangue de George, que se esparramou pelas pedras. Ethan voltou a chorar. Hunter e Penny se aproximaram do corpo e os dois choraram. Penny tremia ainda mais do que Ethan.
— Foi culpa minha. — Ethan falava soluçando. — Foi culpa minha... Minha culpa... Eu não te ouvi, Penny, eu não te ouvi! Droga, droga! Por que não me mataram ao invés de matar o George?! Eu sou o irresponsável! Eu sou o idiota! Ódio... que ódio de mim mesmo! — não conseguia conter o choro.
Penny e Hunter não tinham forças para dar apoio emocional. Eles também choravam. Era o segundo a morrer.

As Cinco RachadurasOnde histórias criam vida. Descubra agora