I - Arco Flamejante

342 22 25
                                    

Dou uma respirada funda antes de sentar em minha mesa, olhando para a tela do computador com o e-mail aberto em uma das abas do navegador. Eram sete da manhã e os raios do sol entravam pela janela atrás de mim, iluminando e esquentando suavemente a sala. Eu não precisava acordar tão cedo, já que trabalhava em casa, mas não conseguia fazer isso. Enquanto dormia, poderia estar trabalhando. Haviam pessoas esperando pelo meu serviço.

O cliente demandou uma melodia calma com a duração aproximada de seis minutos. A música teria uma temática florestal, com um toque de pesar. Precisava focar naquele sentimento.

Coloco minhas mãos no teclado musical empoeirado, lembrando da limpeza que jurei para mim mesmo que faria, semana passada. Comecei com uma sequência de notas baixas na escala ré menor, repetindo-as enquanto caçava uma melodia boa com as notas mais altas do piano. No começo, tive certa dificuldade em encontrar algo que funcionasse e quase pensei em começar do zero. Contudo, após insistir por mais alguns minutos, senti que as coisas estavam começando a fluir. Após uma hora tocando e anotando ideias em meu notebook, já tinha uma imagem consistente de como seria a composição.

Fiquei ali, indo com minha cadeira do computador para o piano por mais ou menos quatro horas. Já estava ficando cansado, e isso fez com que a fome virasse um problema. Como pulei o café da manhã para adiantar meu trabalho, permiti a fome chegar em um ponto onde era difícil ignorá-la. Talvez uma pausa breve fosse uma boa opção.

Só para me sentir um pouco melhor, dou play no que fiz até agora, apenas para ter certeza de que não havia nenhum erro besta que poderia resolver antes de ir comer.

- Certo. - Digo baixinho, coçando o queixo. A composição parecia... Decente. Porém, agora que ouvia com mais atenção, com outra perspectiva, sentia uma sensação desconfortável. A música soava um pouco repetitiva e meio monótona no final. Ora, o preço que meu cliente pagou não foi baixo, não queria decepcioná-lo caso suas expectativas fossem altas. Não queria mandar algo como... Isso.

A música continuava tocando no fundo, e agora não parecia passar totalmente o sentimento que queria. Eu não tinha notado nada disso até revisar, meu deus. Quantas composições que já fiz ficaram desse jeito, sem eu perceber?

Salvo o arquivo .flp em minha pasta de projetos, suspiro e saio do computador.

Após comer dois pães com ovo e queijo como café da manhã/almoço, deito na cama, esfregando minhas mãos na cara, frustrado. Como ainda conseguia me manter com esses bicos? Eu estava vivendo o trabalho dos meus sonhos, mas o que mais parecia era que não merecia estar ali. Decidi tentar dormir novamente, para descansar um pouco mais.

-------

Eu estava precisando disso. O conforto de estar na cama coberto em um dia de frio tirava o resquício daquele sentimento depressivo de antes. Eu me levanto e levo o cobertor comigo, arrastando-o até a cozinha para preparar minha caneca de café. Enquanto a cápsula da bebida é processada na máquina, dou uma checada no meu celular e percebo as 15 ligações perdidas da minha amiga, de vinte minutos atrás.

Quase todo dia às 16 horas, eu e minha amiga Samira, junto com ocasionalmente César, ligávamos para jogar, assistir alguma coisa ou só ficar conversando, mesmo. Era quase que uma rotina, porém ainda era cedo, e pela quantidade de ligações, algo havia acontecido.

Pego minha caneca de café e vou até a mesa, sentando na cadeira me fazendo lembrar do trabalho que precisava continuar, ou naquele caso, consertar. Eu abro o aplicativo que usava para fazer as ligações e recebo uma de Samira, logo de cara.

- Alô? - Ao atender, ouço uma voz baixa vindo do headset que se encontrava pendurado em um prego na parede. Coloco ele na minha cabeça, respondendo com a voz meio rouca:

Instintos felinosOnde histórias criam vida. Descubra agora