Joshua Beauchamp
Upper East Side - Manhattan, Nova York.
03 de setembro.A comida da Any era realmente melhor do que a da Sina, a sopa que minha prima fez para o jantar era anemica, rala e não tinha gosto de nada. Meu paladar estava mais apurado, mas era impossível sentir o gosto de alguma coisa ali.
- Como foi seu dia hoje? - Sina perguntou, pelo barulho de talheres deduzi que ela estava tirando a mesa.
Essa pergunta ainda me deixava um pouco irritado, todos os meus dias eram exatamente iguais e ela sabia disso. Acordar e ficar na cadeira de rodas na sala. Era isso e sempre seria isso.- O que achou da Any?
Irritante. Foi a única palavra que veio na minha cabeça. Nenhuma outra cuidadora se esforçou para falar mais do que o necessário comigo, e algo me dizia que Any iria me contar um pedaço de sua biografia a cada dia. Ela também era agitada, pelos meus cálculos ela não conseguia parar quieta no mesmo lugar por mais de dois minutos.
- Não tenho uma opinião formada. - Era meio verdade. - E como foi o seu dia?
- Ah, você sabe, faculdade e depois estudar na biblioteca. - Era mentira.
Sina e eu fomos criados juntos, como irmãos, e desde sempre ela é uma péssima mentirosa. Sua voz treme e fica um pouco mais alta, e ela gesticula as mãos de maneira exagerada. Eu não podia enxergar, mas tinha certeza que seus lábios estavam tremendo.
Faz uns dois meses que eu percebi isso, sempre quando questionada do porque chegar em casa mais tarde, ela respondia "fiquei na biblioteca estudando." Eu sou meio aleijado e cego, mas não idiota.- Amanhã é dia de fisio! - Sina disse animada enquanto empurrava minha cadeira.
- Eu sei... Conto os dias pra sair dessa porcaria.
- O que acha de estudar um pouco?
Desde o acidente, nesse caso, desde quando fiquei cego, Sina vem insistindo que eu aprenda Braille. A questão é que eu não tinha a menor força de vontade... parte de mim ainda se negava a acreditar que eu não podia mais enxergar e que um dia tudo ia voltar ao normal, que seria perda de tempo aprender algo que eu não iria usar daqui a algum tempo. Patético.
- Talvez outro dia.
- Você sempre diz isso, Josh. - A voz de Sina era suave e delicada, mas eu pude perceber um pingo de desapontamento. O que ela queria de mim, afinal?
- Me leva pro meu quarto, por favor.
Minha prima não era uma pessoa insistente, então atendeu ao meu pedido sem contestar. Eu agradecia mentalmente por isso.
- Boa noite, Josh... eu amo você. - Ela disse no batente da porta.
- Eu amo você também.
Sina saiu e me deixou sozinho. Antigamente essa casa era só minha, e esse quarto onde estou agora, era meu ateliê, eu ainda conseguia me lembrar de como ele era.
Grande e espaçoso, com uma jenela enorme, que ia do chão até o teto, como eu gostava... eu gostava de observar a natureza do jardim da frente, me dava inspiração para minhas obras e me trazia paz.
Levantei da cadeira e dei dois pequenos passos sofridos até a cama, me deitei e abracei meu próprio corpo, como uma criança com medo.Toda noite eu repassava algumas imagens na minha mente, eu tinha medo de me esquecer das cores, do formato das coisas, do rosto de minha prima, como era o pôr do sol, ou as estrelas. Eu tinha medo de me esquecer de tudo.
_______
Todos os dias de fisioterapia eram iguais. Sina acordava animada e fazia batida de alguma fruta que eu geralmente nunca gostava, mas ela dizia que fazia bem então eu mandava pra dentro, tomava meu banho e então saíamos. Hoje estava frio, e provavelmente estava nublado também. Sempre odiei dias nublados, por serem muito escuros, isso me atrapalhava na hora de pintar. Na atual situação da minha vida, eu não gostar do escuro seria engraçado se não fosse trágico...
Sina parou o carro, tínhamos chegado. Com a ajuda de algum dos assistentes da clínica ela tirou a cadeira de rodas do carro, e logo depois me ajudou a sair do mesmo.
- Bom dia, Josh! Como você está? - Era a voz de Shivani, uma das estagiárias. Eu poderia ser rude e grosso ma percepção de algumas pessoas, mas ela sempre foi muito simpática comigo, e eu também estava com bom humor, o que era raro.
- Na mesma Shiv, e você?
- A faculdade anda acabando comigo, mas nada novo. - Ela respondeu bem humorada.
- Você consegue, Shiv! - A cadeira de rodas parou, deduzi que chegamos na sala de exercícios, ou como eu apelidei, sala do terror.
- Você também, Josh...
[...]
- Vamos, Josh, mais um passo!
A voz de Sina me incentivava, mas as vezes era um pouco irritante. Já tinha feito todos os exercícios e agora estava de pé, apoiado por duas barras enquanto dava "passos de bebê".
- Okay, me da sua mão. - Shivani disse do meu lado direito, Sina segurou minha mão esquerda.
Dei mais um passo, agora eram cinco ao todo. Não tive nem tempo de escutar a comemoração das garotas, perdi o equilíbrio e fui de cara no estofado que tinha no chão, para evitar que eu me machucasse quando coisas como essa aconteciam.
Eu estava indo tão bem...- Tudo bem, tudo bem... - Sina disse me ajudando a levantar.
- Não, não está tudo bem! - Eu gritei frustrado, Sina e Shivani ficaram caladas. - Faz meses e até agora eu não consigo nem andar como uma pessoa normal! Eu sou a merda de um vegetal!
- Josh...
- Eu preferia ter morrido naquele acidente.
- Não diga isso! - A voz de Sina estava embargada, ela gritou com autoridade.- Nunca mais diga isso de novo!
Eu me calei. A sala caiu em um completo silêncio. Pude escutar Sina fungar.
- Acho que é o suficiente por hoje... - A voz de Shivani era baixa, ela estava desconfortável com a situação. Todos estavam.

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Behind Blue Eyes || Beauany
Ficção AdolescenteJovem e com um futuro cada vez mais promissor, Josh Beauchamp estava no auge de sua carreira como artista plástico, quando um acidente de carro acaba lhe tirando tudo,incluindo a sua visão. Cego e dependente de sua mais nova cuidadora, o rapaz apren...