UM

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Eugênio

Mais um dia ganhando dos gêmeos, Guilherme e Gustavo, no futebol de rua. Não seria a primeira vez, eles não são nada inteligentes e acham que podem usar força bruta para tudo, inclusive para me baterem toda vez que perdem para o meu time. E aí tenho que correr para não apanhar.

Meu nome é Eugênio e cresci na Paróquia de Santa Eugênia, por isso o meu nome. Foi o padre Carlos quem escolheu assim que ele me encontrou na porta da igreja onde fui deixado quando era bebê. Ele me criou desde então e é como se fosse um pai para mim.

A vida na igreja não é moleza. Trabalho na secretaria da paróquia todos os dias depois da escola; nos finais de semana, tenho que limpar as imagens de todos os santos; e ajudo quando surge uma coisa ou outra.

É claro que isso me ajudou bastante na hora de correr dos gêmeos, pois todo esse trabalho me deixa com um corpo legal para sair piruetando por aí. O padre Carlos não gosta e diz que eu sou energético demais, mas é o que faço para me divertir. Adoro rir à custa daqueles dois bobões.

Vi um deles atrás de mim feito um touro. "Cadê o outro?" pensei. Olhei para frente. O gêmeo número dois estava vindo do outro lado. Tá legal, eles estavam começando a ficar mais espertos. Corri até chegar mais perto do Guilherme e então virei à esquina o deixando sem tempo de frear, fazendo com que ele esbarrasse no Gustavo e os dois caíssem no chão. Eles ficariam ainda mais zangados se me alcançassem e eu teria que fazer alguma coisa.

Subi outra rua e avistei uma árvore alta e larga na calçada alguns metros à frente. Corri até ela, olhei para os lados, peguei impulso e subi, me escondendo entre as folhas. Eu estava respirando com dificuldade depois de correr por tanto tempo e não sabia se eles me encontrariam ali ou não. Foi quando ouvi um barulho.

- Psiu, ei!

Olhei para baixo, do outro lado da árvore e meu queixo caiu. Havia uma garota mais ou menos da minha idade me observando do quintal da casa dela. Tinha cabelos loiros compridos que corriam até os quadris, usava um vestido florido longo com um avental sujo de tinta e os pés estavam descalços. Aliás, ela estava com tinta por todos os lados; nos braços, no rosto e até no cabelo.

Mas ainda assim estava linda.

- Desça aqui! - Ela disse. - Eles vão te enxergar daí de cima!

Eu a encarei com uma expressão que significava "Você perdeu o juízo?"
Entrar no quintal alheio era invasão de propriedade! Se os pais dela me pegassem ali eu teria um problemão. Mas também tinha conhecimento de que o Guilherme e o Gustavo estavam próximos, me farejando como dois cães raivosos. Suspirei e desci pelos galhos, colocando os dois pés sobre o muro e descendo cuidadosamente até o chão. Andei devagar até ela.

- Como você sabia...? - Perguntei realmente curioso. Não tinha como ela ter enxergado o que tinha acontecido, a única abertura no portão daquele lugar era um retângulo cheio de arabescos próximos à fechadura.

- Te vi lá de cima e corri até aqui quando percebi o que estava pensando em fazer. - Explicou, apontando para a casa dela, que era de dois pavimentos e um dos cômodos tinha uma janela que dava para a rua. Era branca, simples, com um quintal pequeno cercado de plantinhas em vasos decorados nos cantos da parte da frente. O terreno ficava localizado em uma parte bastante elevada do bairro, o que realmente facilitava para que ela visse tudo que acontecia. Ponderei sobre aquilo.

- Eu podia ser um ladrão fugindo ou uma pessoa mal intencionada! - Expliquei, imitando a pose do padre Carlos com as mãos na cintura sempre que me dava uma bronca. - Não é legal ficar chamando estranhos para o seu quintal! Onde estão os seus pais?

A menina não me deu chance de falar mais nada, pois me deu um chute no meio das pernas seguido de uma joelhada no estômago, que me derrubou no chão.

- Ai!! - Abracei meus joelhos e fechei os olhos de dor. Quando olhei para cima, percebi que ela estava com um vaso de cerâmica na mão.

- Posso te bater com isso! - Ela ameaçou. O vaso era grande e ela o levantava com tanta facilidade que eu presumi que era forte o suficiente para nocautear com ele. - Além do mais, o Pasqual me ensinou alguns golpes. Ele e o marido fazem aikido e moram a cinco minutos daqui. Sei como te imobilizar e te matar em minutos.

- Já entendi! - Choraminguei, ainda com dor. Me apoiei nos cotovelos e olhei para ela, impressionado de verdade com a expressão determinada que exibia, apesar de ser bem menor do que eu. Isso me fez sorrir, pois achei aquilo muito legal. - Tudo bem, então. Quem é Pasqual?

- É o meu tutor. Faço homeschooling e ele vem três vezes por semana para me acompanhar nas matérias. - Ela abaixou o vaso, mas não o soltou. - E aqueles meninos que estão atrás de você, quem são?

- Os gêmeos? São o Guilherme e o Gustavo, eles são mais velhos e implicantes. Ganhei deles no futebol, mas não são bons perdedores. - Expliquei me sentando de pernas cruzadas. - Também não gostam muito de mim pelo visto...

- Quanto tempo você acha que pode ficar aqui? - Ela perguntou.

- Talvez uns quinze minutos até desistirem... Não vou fazer nada, prometo! Você poderia me bater com o seu vaso se eu tentasse ou me dar um dos seus golpes mortais. O que é isso tudo? - Perguntei, para a tinta espalhada pelo corpo dela.

- Estou trabalhando em uma peça lá no meu quarto. - Ela disse. - Customizo coisas para vender.

Então se sentou no chão na minha frente, colocando os cotovelos em cima do vaso. Ela apoiou o rosto nas mãos franzindo as sobrancelhas, me encarando como se estivéssemos brincando de jogo do sério e fiquei com vontade de rir. Talvez fosse algo sobre a minha aparência. Ás vezes, quando ajudo o padre Carlos nas celebrações, as mulheres que frequentam a igreja ficam querendo me apresentar para as filhas e netas delas, embora nenhuma tenha despertado interesse em mim por tempo suficiente.

- Qual é o seu nome? - Ela perguntou. - Onde você mora?

- É Eugênio. Eu moro na Paróquia Santa Eugênia, mas fica em outra região. E o seu?

- Não sei se eu deveria te dizer... Você é um estranho. Minha mãe não confia em estranhos ou em garotos.

Eu ri.

- Foi você quem me convidou!

- Está bem, é verdade! - Ela riu também, dando de ombros, os cabelos dela tocando o chão. - É Marisol. O meu nome é Marisol.

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N/A: Eu tomei a liberdade criativa de nessa história fazer o homeschooling ser normal no Brasil, para trazer uma sensação de isolamento maior para a personagem. Para quem não sabe, homeschooling é quando os pais preferem que a educação do filho aconteça em casa. Mas no nosso país, é obrigatório por lei que toda criança a partir dos 04 anos esteja matriculada em uma escola.

O que acharam desse primeiro capítulo? Me contem!

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