IV- Continue andando

51 4 0
                                    

Thomas

Uma pequena chama é lançada e cai ao lado do meu pé. Observo enquanto ela rapidamente se apaga e é possível ver a terra que está por baixo dela novamente. A fogueira na minha frente consegue iluminar bem o lugar onde estou a ponto de eu conseguir ver ao menos o que está a dois metros de distância de mim. É claro que é estúpido acender uma fogueira em um lugar tão escuro pois chama atenção não só de errantes, mas também de pessoas. Só que eu prefiro correr o risco de morrer por algo do qual eu posso me defender e quem sabe sair vivo do que de algo do qual eu com certeza não tenho a menor chance de sobreviver como o frio. Pode não parecer, mas é horrível. A sensação de seu corpo estar desprotegido enquanto ele é envolto por algo gélido, que o faz tremer incessantemente. Sem falar da gripe, que caso você não morra de hipotermia vai te matar em dias pois o seu sistema imunológico já está fraco e não há mais remédios para te curar. Então eu acho que a escolha é fácil. Fogueira.

Meus olhos começam a querer fechar. Não me lembro qual foi a última vez que consegui dormir. Um, dois ou até três dias atrás talvez. Não é muito fácil relaxar sabendo que a qualquer momento pode aparecer algo para te matar, te sequestrar ou te roubar. Mais a primeira opção. Uma parte de mim grita para que eu me deite e descanse e em parte ela até tem razão. Eu não acho que um homem com sono e com um corpo mais do que cansado seja muito útil contra um errante. Eu começo a ouvir essa parte até que uma outra parte com uma voz claramente mais potente grita me relembrando de cada coisa terrível de forma precisamente detalhada que pode ocorrer caso eu durma. Dou uma risada fraca. Vozes na minha cabeça. Só posso estar ficando maluco.

Tento permanecer a maior parte do tempo acordado porque prefiro achar um lugar seguro primeiro antes de dormir, e se isso significa mais um dia de espera eu faria. O único problema é que eu não tenho muitas distrações nesse lugar escuro e silencioso. Apoio a cabeça na mão e olho para o lado enxergando apenas alguns pedaços de cimento, partes do prédio destruído e ligas de metal. Já estou acostumado com tudo isso porque eu costumo dormir muito em prédios que desabaram por considerar um local mais seguro que a floresta ou as ruas da cidade. Sinto um cansaço enorme e meu sono aumenta. Não posso dormir. Preciso arranjar algo para me ocupar. A necessidade de sobrevivência já não é o bastante para me manter acordado, ainda mais porque nada ameaçador apareceu desde que eu cheguei. Infelizmente minhas últimas tentativas de fazer o que a segunda voz dizia vão por água abaixo. Minha visão começa a escurecer e meus olhos já estão cansados, implorando para serem fechados. Então faço a única coisa que eu não queria fazer e que tenho evitado por muito tempo por medo: durmo.

                                      ...

Abro os olhos lentamente quando sinto algo cair sobre meu rosto. Percebo que já é de dia quando vejo os raios solares entrarem por entre as frestas deixadas pelos escombros do prédio. Sinto alguma coisa pingar em meu rosto mais uma vez. Parece uma gota d'água, mas é mais ácido sobre a minha pele. Passo a mão na testa e quando tiro consigo ver a cor vermelha escura nela, quase preta. Então escuto um barulho, como um grunhido. Olho para cima na mesma hora e meus olhos alcançam a figura acima de mim. Seu corpo está preso por um pedaço de ferro enorme que perfura sua barriga e seus braços balançam no ar como se quisessem alcançar algo. Eu. Apoio minhas mãos no chão e com a ajuda delas dou um impulso para afastar meu corpo de onde eu estou. Como um errante tinha chegado naquele lugar? Como eu poderia ter sido tão burro ao ponto de não conseguir perceber sua presença? Se não fosse por aquele pedaço de ferro eu estaria com metade do meu corpo comido nesse momento. Vejo o sangue de sua barriga caindo no chão, mas não era onde eu estava. Só depois que eu percebo que o sangue que me atingiu não veio de sua barriga e sim de sua boca. Nojento. Para falar a verdade seria
nojento de qualquer jeito. Limpo o líquido vermelho do meu rosto com a minha blusa e olho mais uma vez para o errante pendurado. As vezes eu até penso que o universo não quer que eu morra. Quero dizer, foram tantas as vezes  que eu fiquei cara a cara com a morte que daqui a pouco eu é que vou acabar pegando ela de surpresa.

Jogo de Sobrevivência Onde histórias criam vida. Descubra agora