CAPÍTULO CINCO: Internato

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Quando a dona Lurdes falou a palavra morte eu rapidamente pensei em minha mãe. Ela não havia me falado a verdade, e não precisava. Eu sabia de tudo. O horror que ela demonstrava, sua expressão amedrontada com a voz sem entonação estava em sua face na última vez que nos vimos. Eu temia por ela. Eu não queria partir, mas me vi sem escolhas, e ela também.

Encolhi-me no assento e aceitei o fato de que Piropó seria o meu lar pelos próximos meses. O carro andava em baixa velocidade pela única rua principal da cidade, se é que Piropó poderia ser chamada assim, pois ela sem dúvida nenhuma estava mais para um vilarejo praticamente abandonado.

Enquanto Nelson dirigia olhei bem para as pequenas lojas que se estendiam na calçada. Nada era moderno e tudo parecia ser bem distinto. As lojas possuíam letreiros imensos com nomes engraçados que revelavam ser negócios de família. Todas elas estavam quase vazias, abandonadas e deixadas as moscas. Apenas a pequena livraria estava abarrotada de gente. Escancarei os olhos e vi que o lugar estava cercado de jovens com roupas surradas e aparência cansada. Esquisito. Mas eu já estava quase me acostumando com a ideia de que nada naquela cidade era normal. Acreditar cegamente em um fantasma até mesmo para mim que só tinha dezessete anos era uma tolice.

Abri a janela do carro e deixei o vento gélido entrar congelando as minhas têmporas. A cidadezinha além de estranha era gelada e ventava muito também o que fez com que os meus cabelos batessem furiosos no meu rosto. As nuvens estavam pesadas e rastejavam pelo céu que cobria todo o vilarejo. Senti uma lufada de ar frio roçar a minha pele, e um leve calafrio atrás da orelha.

Logo lembrei do meu pai, ele adorava dias assim, frios e com nuvens violentas de chuva. Certa vez fomos para o litoral. Dificilmente íamos a praia por dois motivos: Minha mãe odiava ter que usar rupas de banho e detestava areia molhada colada em seu corpo. E o segundo motivo era que o meu pai não gostava do sol quente que produzia um calor escaldante que deixava a sua pele branca vermelha como um camarão. Por isso, quando o dia estava nublado e ninguém queria ir para a praia, lá estávamos nós, descendo a serra em direção ao litoral norte que ficava a poucas horas de São Paulo. Não entravamos no mar. Só ficávamos ali observando as ondas se quebrarem no meio do oceano.

O mais interessante na nossa pequena viagem era o trajeto até o litoral. Meu pai ia dirigindo um fusca amarelo que ele apelidara de Beethoven, enquanto cantarolava com a minha mãe marchinhas de carnaval. Meus pais odiavam o carnaval, mas adoravam as suas músicas. Naquele dia meu pai estendeu a mão para a minha mãe enquanto a outra segurava firme o volante, ele entrelaçou os seus dedos nos dela e ambos olharam o horizonte. Eles não disseram uma palavra sequer, mas o olhar e o jeito que suas mãos se seguravam, se apertando, sentindo o calor e o suor ardente de suas mãos, não precisava de palavras para declarar o quanto eles se amavam.

Logo deixamos o pequeno centro de Piropó que nem era asfaltado e entramos na área rural da cidade. Fomos cercados de sítios pequenos e miseráveis. Por galinhas e vacas abandonadas no pasto seco. E fazendas antigas de barões de café que eram quadradas com janelas arredondadas, e com a pintura externa arruinada. Era como dona Lurdes havia dito mais cedo. Todos foram para a cidade em busca de um emprego em fabricas e indústrias, se transformaram em robôs do sistema como no filme "Tempos Modernos" que o meu pai sempre assistia escondido da mamãe e que me arrastava junto com ele.

A estrada estava cada vez pior e Nelson sofria para desviar de todos os buracos e de algumas vacas que estavam abandonadas no meio do caminho. Ele me olhou discretamente pelo espelho retrovisor, seu olhar demonstrava pena, ele sentia pena de mim e estava assustado com aquele lugar. Eu tentei ser corajosa, fingir uma certa valentia e ignorar os boatos de fantasma, havia outros problemas mais graves que eu deveria me preocupar. Entretanto, quando finalmente o opala azul parou em frente a um letreiro de placa de ferro pendurado em uma parede que sustentava um enorme portão enferrujado, meu coração saltou e um tremor invadiu o meu corpo. Pensei em dizer a Nelson para voltar. Eu podia ficar na casa dos meus avós e estudar em São Paulo mesmo. Minha mãe não precisava saber. Mas não. Suspirei baixinho. Eu tinha que ser corajosa. Minha mãe me pediu isso. Eu tinha que obedecê-la, porque no fundo eu sabia que ela estava me protegendo.

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