CAPÍTULO DOIS: Esquerda

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COMUNISTA. A primeira vez que eu ouvi essa palavra eu tinha dez anos. Eu estava na escola quando ouvi a diretora Helena chamar o professor Cássio, de estudos sociais, de comunista. Fiquei confusa na época. Eu era uma pirralha curiosa, por isso quando cheguei em casa bati os meus pés abelhudos no chão, coloquei minhas duas mãos na cintura e perguntei:

— O que é comunista?

Meu pai que estava tomando café com leite sorriu gentilmente com um bigode branco em torno dos seus lábios, enquanto minha mãe engasgou com o pão. Ele abriu a boca para me responder, mas minha mãe foi mais rápida e o interrompeu duramente.

— Comunistas sequestram crianças mal-educadas e as transformam em sabão!

Arregalei os olhos, e coloquei as minhas duas mãos no rosto e abri a boca espantada.

— Sua mãe está brincando, Sofia — meu pai balbuciou.

— Não estou não! — minha mãe retrucou. Seu rosto era sério e ela parecia estar ofendida. — Comunistas são cruéis! Pessoas malvadas que querem escravizar as pessoas com as suas falsas ideias! O comunismo é mal desse século e isso precisa acabar!

Ela terminou o seu minidiscurso, vermelha de raiva e toda impetuosa. Meu pai riu, e como riu. Ele caiu em uma gargalhada profunda e gostosa que faziam cócegas no meu estômago. Minha mãe o cutucou furiosa não achando nada daquilo engraçado. Ela levantou da mesa bruscamente e gritou comigo:

— Nunca mais fale o nome comunista na minha casa! — berrou exacerbada.

Eu assenti com medo de apanhar ou ficar de castigo. Ela saiu da cozinha tão brava que parecia que estava soltando fogo pelas ventas. Meu pai piscou para mim com o rosto amável e a seguiu puxando o seu braço coberto pelas rendas grossas tons de pasteis. Eu escutei de longe ela gritar com ele e vice-versa. Fiquei assustada com a proporção de uma briga causada por uma palavra que nem era bonita. Me senti culpada por fazer meus pais brigarem e decidi que nunca mais falaria sobre política com eles. Até a morte do meu pai eu cumpri a promessa, mas naquele momento eu queria saber o que de fato havia acontecido? Eu sempre pegava as conversar no ar, raramente as ouvia com clareza. Minha mãe só havia me dito que o meu pai estava morto e que não ia ter velório, porque ele já havia sido enterrado. Mas eu queria saber a causa da sua morte. Ela não comentava sobre isso, era um silêncio mortal. Eu ouvi alguns fragmentos de conversa dela no telefone com o meu avô, as palavras esquerda e militares foram ouvidas tantas vezes que eu comecei a acreditar que o meu pai fora assassinado.

O vovô — pai da minha mãe — chamou o meu pai de comunista no natal. Meu pai abandonou o emprego na faculdade e sumiu durante todo ano, aparecendo somente de vez em quando, ou ligando no meio da noite para perguntar se eu estava bem e se estava treinando piano. Uma vez ele sumiu durante um mês inteiro e me mandou o seguinte bilhete:

Cara bonequinha,

Papai te ama. Muito. Desculpa por não ter ido no seu primeiro recital. Desculpa por não estar presente, mas tenho certeza de que outras oportunidades irão surgir, não é mesmo? Te amo tanto, minha princesa! Em breve voltarei e te contarei o que está acontecendo. Papai está participando de algo grande, algo que irá melhorar o seu futuro! Mande um beijo para a rabugenta da sua mãe. Ela não quer falar comigo. Beijos princesa.

As pistas estavam lá desde o começo.

Uma vez o irmão de Angélica — uma garota que estudou comigo — desapareceu sem deixar vestígios. Toda a família ficou desesperada. Ele era militante. Naquela época eu não sabia direito o que aquilo significava, mas eu pensava que tinha haver com os comunistas. Angélica me disse no seu último dia na escola que o seu irmão tinha sido morto e torturado pelos militares, que eles o mataram e que não queriam devolver o corpo para que a família pudesse enterra-lo. Depois de me confidenciar aquilo, ela partiu com a família para o Chile. Eles fizeram com o meu pai o mesmo que fizeram com o irmão de Angélica?

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