CAPÍTULO DEZ :Livraria dos livros esquecidos

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Debrucei-me sobre o peitoril da janela e fiquei observando o sol nascendo no horizonte e engolindo toda a vegetação. Uma fina camada de neblina que havia vestido o solo de prata se dissipava à medida que o sol o alcançava com o seu calor sufocante e com a sua luz espectral.

A noite havia sido tranquila. Nada de gemidos ou barulhos assustadores. A madrugada foi fria e o brilho da lua irradiou o dormitório nos vestindo de prata. Sem Monstro e o principal: sem pesadelos. Foi como se eu tivesse entrado em coma e a única sensação era o vento roçando o meu rosto. Me beijando suavemente.

Era sábado. O tão sonhado e esperado dia livre. Mesmo estando no internato há apenas dois dias. Eu mal podia esperar para experimentar a sensação de liberdade. Poder escapar daquelas paredes sufocantes e daquele véu invisível que revestia o internato de tristeza e pavor. Essa sensação de liberdade me embriagava. E eu formulava algumas ideias do que eu poderia fazer do meu dia. Cida havia sido tão simpática comigo no dia anterior se oferecendo para ser a minha guia turística durante o nosso passeio em Piropó mesmo sabendo que não havia nada naquele vilarejo para ser visto. Luiza havia trocado algumas palavras comigo também, mas a impressão que eu tive era que os seus pensamentos estavam perdidos em algum lugar inebriante que a envolvia de tal maneira que ela parecia perdida, distante demais e completamente desinteressada em nossa conversa. Laura ainda sorria para mim e toda vez que ela tentava se aproximar Anita a arrastava para bem longe.

Anita e o seu grau de parentesco com Melissa Rangel. Talvez isso pudesse explicar o porquê de ela ser tão mau humorada. Eu também seria se fosse obrigada a estudar no mesmo local em que a minha irmã fora assassinada. Tentei afastar esses pensamentos sobre o Monstro e o seu passado que grudavam em mim como um parasita. Eu não iria desperdiçar o meu maravilhoso dia ensolarado pensando naquele par de olhos cinzentos e no seu passado mórbido.

Observei mais uma vez a paisagem granulada que se formara. De longe eu podia enxergar todas as sepulturas enfileiradas e todo o brilho de morte ser arrastado para longe enquanto um feixe de luz trazia vida e cor para o lugar, iluminando as estátuas de anjo debruçadas sobre os calabouços. As nuvens transparentes de modo algum ofuscavam o brilho intenso do azul do céu. Uma brisa quente bateu em minhas têmporas.

— Argh! Feche essa janela. — Anita resmungou com as mãos cobrindo os olhos e o seu corpo se remexendo na cama.

Eu a ignorei e continuei encarando o brilho que se alastrava pelo internato. Um eco espectral saiu do rádio portátil de Cida. Ela ouvia é proibido proibir. Tive a impressão de que essa era a única música que o rádio tocava.

Mesmo aos fins de semana nós tínhamos que acordar cedo. Mesmo o café sendo servido mais tarde. De acordo com Luiza, a irmã Carla era meio desmiolada que tocava o sino sempre nos mesmos horários, não importasse o dia. Por isso estávamos ali, ainda de camisola esperando o horário do café da manhã. Laura foi a única que conseguiu ignorar o sino com muita facilidade e por isso estava dormindo tranquilamente. Eu, porém, tinha um sono leve demais.

— Desliga essa droga de rádio! — Anita se exaltou com Cida que sorria maliciosamente para ela e começou a cantarolar a música em um tom mais alto irritando Anita ainda mais. Luiza se empolgou também ajudando Cida a cantar o refrão. As duas riam e se divertiam em provocar Anita.

Eu digo não.

Eu digo não ao não.

Eu digo.

É proibido proibir.

É proibido proibir.

É proibido proibir.

É proibido proibir.

Luiza e Cida riam cantarolando, felizes por irritar Anita que bufava com as mãos tapando os ouvidos. Eu me juntei a Luiza e a Cida e cantei junto com elas e acabamos fazendo uma pequena guerra de travesseiros nos batendo e rindo feito três hienas desesperadas. Anita se irritou com o barulho e tacou o seu travesseiro em mim. Nós rimos dela e rimos mais ainda quando percebemos o ronco alto de Laura que dormia profundamente enquanto uma baba escorria pelo canto da sua boca entreaberta.

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