"Eles torturaram o meu irmão, Sofia. Eles bateram nele antes de matá-lo. Queriam arrancar informações dele, mas o meu irmão não sabia de nada. Ele não fazia parte de nenhum grupo comunista. Um colega de cela que teve a sorte de ser solto nos contou o que os militares fizeram com o meu irmão. Eles o prenderam em um pau-de-arara e deram choques nele. Bateram nele. E até tentaram afogá-lo".
Acordei com a voz de Angélica sussurrando nos meus ouvidos. Um cheiro podre invadiu as minhas narinas e o meu rosto se contorceu com a podridão do ar. Eu estava em um corredor estreito, escuro, tive que escancarar os olhos para poder enxergar. Abaixo do meu corpo um chão de cimento congelava a minha pele e um arrepio subiu pelas minhas costas.
Aquele não era o corredor do internato. Inclinei o meu corpo e olhei ao meu redor várias celas com grades de ferro podre se estendiam até o fim do corredor. Levantei lentamente. Meu corpo encharcado de suor. Passei as mãos pelos meus cabelos que estavam úmidos por causa do líquido que eu liberava. Minhas mãos trêmulas se agarraram a barra da minha camisola de algodão. Olhei mais uma vez para as celas vazias. Todas elas com um colchão velho e furado abandonado no chão áspero. Sem ao menos um lençol. Ao lado um vaso de cimento e uma pia de concreto. Tudo assim bem escancarado.
Continuei me arrastando até o fim do corredor. O cheiro foi se tornando cada vez mais forte. Um odor metálico de sangue e um barulho que vinha da última cela a minha direita. Gritos. Gemidos. E mais gritos de dor acompanhados de uma risada maléfica e estridente que parecia se divertir com os grunhidos. Quanto mais perto da cela, mais gritos eu ouvia, e mais o meu coração pulava dentro de mim. Não vá até lá. Mas eu fui. Mesmo com o aviso do meu coração. Mesmo com um arrepio de morte que se alastrava pelo meu corpo arqueando os pelos do braço e os cabelinhos enrolados da nuca. Mesmo com a garganta seca e a língua dolorida. Aproximei-me mais e estalos de cassetete foram ficando cada vez mais audíveis. O que eu fazia ali? Como faria para fugir?
Apoiei minhas mãos na grade fria. O metal áspero contra a minha pele. Minhas mãos o apertaram ainda mais forte quando eu vi dois homens. Um de farda e outro de roupa social se divertindo torturando o meu pai. Os homens tinham um rosto frívolo. Um borrão se formou em suas faces e eu não pude enxergar nitidamente os seus traços. Os seus risos cheios de escarnio bateram nos meus ouvidos e um tremor se apoderou do meu corpo. Escancarei os olhos. Meu pai estava pendurado em uma barra de ferro, com ambos os punhos atravessados e presos a dobra do joelho. Meu pai estava nu e o seu rosto vermelho encharcado de sangue que banhava não apenas a sua face como também pingava no chão como gotas de água escapando de uma torneira. Tapei os olhos imediatamente ao ver o meu pai naquele estado. Pressionei a palma da mão no meu rosto e estreitei os meus olhos. Me encurvei e me ajoelhei no chão com uma das minhas mãos presas na grade deslizando no metal frio.
As lágrimas queriam sair e eu recusei abrir os meus olhos e ver o meu pai apanhar, gritar de dor, gemer a cada estalo que o cassetete batia em sua pele pálida. Meu coração foi se afundando no meu peito. A voz foi sumindo e eu tentava grunhir, dizer algo. Soluços escapavam dos meus lábios.
— Parem... — forcei a minha voz a sair. — Por favor, parem — sibilei.
Mas ninguém me escutava. Eles batiam no meu pai com força. O torturavam de um jeito cruel, meu corpo tremia. O lugar cheirava morte. Meu pai gemia de dor. Ele estava sofrendo e com ele eu sofria também.
— Parem! — eu gritei abrindo os olhos e encarando furiosa os homens sem rostos. Uma súbita fúria invadiu as minhas veias. Uma onda de ódio subiu pela minha face fazendo eu ficar furiosa o bastante para o meu rosto arder e o meu peito inflamar. Ódio. Eu odiava eles. Se não fosse pelas grades que nos separavam eu pularia neles e arrancaria os seus olhos. Eu os mataria de forma lenta e dolorosa. Eu os faria sofrer. Arrancaria a língua venenosa de cada um deles e os faria engolir para que tomassem do próprio veneno. Eu nunca havia sentido raiva, mas eu gostei de odiá-los. Gostei de sentir o ódio em cada gota do meu sangue, pulsando em minhas veias. Se eu pudesse eu os machucaria, mas é claro que eu não podia. A única coisa que consegui foi ficar parada ali, chacoalhando as grades da cela furiosa, tempestuosa com os meus cabelos batendo contra o meu rosto, gritando para que eles parassem de o machucar.
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Estrelas de Papel (Disponível na amazon)
Fantasy1970. Ditadura militar. Sofia é mandada para um colégio interno no interior de São Paulo. Triste por ter sido separada da família, a jovem de 17 anos se vê desamparada em um colégio extremamente autoritário. Entretanto, o que mais intriga Sofi...