1970
Janeiro
— O seu pai não vai voltar.
Minha mãe me disse naquele dia quente de verão.
Eu estava sentada no balanço velho do quintal de casa, sentindo a ferrugem do brinquedo contra a minha pele, inalando calmamente o ar fresco do fim da tarde.
Minha mãe não falava comigo há dias. Ela ficava deitada o dia inteiro e só se levantava para fazer suas necessidades básicas, mais nada. Eu me lembro da voz dela gritando pelos cômodos da casa dando ordens a Maria, nossa empregada. Eu me lembro que a sua voz era fatigada, que ela estava fedendo, e os seus olhos inchados de tanto chorar. Todas às vezes que eu cruzava o corredor ela ouvia o som dos meus sapatos baterem no carpete de madeira e resmungava alto com a voz embargada que era para eu não me aproximar. Eu esperava o vazio da noite para saltar da cama e ir até o quarto dela com os pés descalços no piso frio, caminhando em passos lentos pelo estreito corredor que separava os nossos quartos.
Como um gato manhoso eu envolvia os seus braços no meu corpo e a abraçava sentindo o seu cheiro de suor e cigarro. Eu odiava cigarros. Ela acordava furiosa quando me via fungando em seu pescoço e me expulsava aos berros do quarto. Foi assim durante dias. Eu pensava que ela estava triste com a viagem misteriosa do papai. Eu sabia que ele havia se metido em encrenca com os militares. Eu ouvi o meu avô chamá-lo de comunista em uma briga no natal, mas papai riu do vovô, balançou a cabeça nervosamente, cambaleou para trás de tão bêbado que estava, e acendeu um cigarro, deixando o meu avô profundamente irritado. Vovô odiava cigarros. Assim como eu.
Depois disso meu pai foi viajar. Era noite de ano novo, ele havia brigado com a minha mãe outra vez. A casa estava um caos e o telefone tocava sem parar. Meu pai arrastou uma mala grande de couro marrom para o escritório, pegou sua velha pasta de advogado onde enfiou alguns papéis. Depois disso, ele se aproximou de mim, beijou minhas bochechas e me abraçou apertado. Ele nunca tinha me abraçado daquele jeito. Ele nunca mais vai poder me abraçar. O cheiro do cigarro ficou grudado no meu vestido verde aspargo e na minha pele. Eu suspirei baixinho e abracei o meu corpo. Aquele cheiro horrível seria a minha última lembrança dele. Ele sorriu amavelmente formando duas covinhas no canto dos lábios — covinhas que eu herdei por sinal —, coçou sua careca e saiu pela porta da frente com um sorriso vitorioso nos lábios, os olhos negros brilhando sobre a luz pálida da sala de estar. Minha mãe o observava no topo da escada, com os seus olhos azuis tão frios quanto o inverno. Ele acenou para ela e deu uma piscadela maliciosa. Ela virou o rosto irritada. As maçãs da sua face eram tão vermelhas quanto o sangue que pulsava nas minhas veias. E cruzou os braços, dando de ombros como se não se importasse com a partida dele. Eu sabia que era mentira. Ela se importava sim.
— O lugar para onde eu vou a liberdade realmente existe.
Papai tinha razão. O lugar que ele foi realmente permitia que ele fosse livre: O céu.
*
As nuvens estavam pesadas e negras como a noite. Uma bruma suave me envolvia de tal maneira que era como se ela estivesse me convidando para dançar sobre a relva macia que os meus pés pisavam. O cheiro de terra molhada se alastrou pelo quintal. O tempo fechou rapidamente na mesma velocidade em que a minha alegria se foi. Não sei colocar no papel a dor que eu senti naquele dia, logo após as palavras ásperas da minha mãe sobre a morte do meu pai. Eu não conseguia chorar. Acreditava que aquilo era um pesadelo cruel e que logo eu acordaria e veria novamente a face cansada do meu pai, com a cabeça inclinada sobre mim esperando eu abrir os meus olhos pesados de sono.
Abandonei o balanço enferrujado que continuou a balançar por causa do vento forte, fazendo um rugido. Olhei para o céu, o novo lar do meu pai. Subi na árvore que tinha o triplo do meu tamanho e que era cercada de ervas daninhas. Apoiei as minhas mãos no seu tronco áspero, espesso e gosmento, e escalei até o seu topo, onde eu poderia enxergar melhor o céu com nuvens gordas de chuva. Ali do alto eu pude sentir um pingo d'água cair sobre o meu rosto. Olhei para cima e fechei os olhos sentindo o cheiro de terra molhada invadir as minhas narinas e acalmar o meu corpo, ouvindo o som tranquilizante dos pássaros que circundavam a minha casa. Meu pai adorava dias chuvosos, talvez aquilo fosse um sinal, talvez ele estivesse tentando me mostrar que ele estava bem, que tudo ficaria bem. Logo outros pingos foram se acumulando e caindo sobre o meu rosto de uma forma mais brusca e violenta. As nuvens ficaram perigosas e os trovões se tornaram uma melodia perfeita para o velório do papai. Eu não abaixei a minha cabeça em nenhum momento, fiquei ali com a mão estendida para o alto, balançando os meus dedos que queriam tocar as nuvens. Deixei que a chuva que foi se tornando cada vez mais furiosa e esparsa, molhasse o meu rosto, meu corpo, o meu cabelo loiro, minha alma.... Eu queria lavar tudo, incluindo o sentimento de angústia e de dor que queimava no meu peito. " Deus, me ajude" sussurrei baixinho para o meu amigo dos céus. Aos poucos não era só a água da chuva que molhava o meu rosto, mas as lágrimas que rolavam pela minha face também.
*
Maria ficou furiosa ao me ver ensopada molhando todo o carpete mogno da sala. Ela me olhou brava com o meu comportamento e depois deu um sorriso amarelo de quem não podia reclamar em voz alta, entretanto eu escutei sua voz aguda murmurar pelos cantos da casa. Tomei um banho rápido e coloquei um vestido amarelo que Maria detestava. Ela dizia que aquele vestido me deixava pálida demais. Minha mãe ainda estava trancada no quarto a base de calmantes, cigarros e bebidas, decidi que era melhor não a incomodar. Desci e fui até a cozinha conversar com Maria. Ajudei ela a preparar o jantar, mas a minha função basicamente se resumiu em lavar a louça e passar para ela os ingredientes da torta de frango. Em nenhum momento ela perguntou como eu estava me sentindo. Maria era extremamente discreta e evitava tocar em assuntos íntimos, mas eu sinceramente esperava pelo menos um abraço. Minha mãe me contou que o meu pai havia morrido depois que ele já fora enterrado. Ela não fez nem o velório. Meu pai foi direto do necrotério para o cemitério. E eu nem pude me despedir, apenas o cheiro de cigarro e sua careca lustrada ficaram como recordação da última vez que eu o vi. Eu não tinha lágrimas para chorar, meu peito e o meu corpo estavam vazios demais para isso.
Como já imaginávamos minha mãe não quis jantar. Jantei com Maria na cozinha mesmo, sem nenhuma cerimônia. Não trocamos nenhuma palavra. A pele negra de Maria reluzia sobre a luz clara do luar que refletia através da porta entreaberta da cozinha. Ela não falava muito, e eu também não quis falar. Quando terminamos, acompanhei Maria até a porta e ficamos paradas lá esperando a Kombi chegar. A chuva havia desaparecido a poucas horas e o céu já estava cercado de estrelas ao lado da lua grande e majestosa. Era apenas uma chuva de verão. Torci para que aquela dor fosse tão passageira quanto as chuvas do fim da tarde. Quando a Kombi finalmente chegou Maria me olhou com pena e esboçou um sorriso tão branco quanto à luz da lua.
— O meu pai era comunista? — perguntei antes que ela pudesse entrar na Kombi amarela.
Ela me olhou assustada com a minha pergunta, fez uma longa pausa com as mãos grudadas na bolsa branca que estava contra o seu peito.
— Ele só queria democracia — ela me respondeu com a voz firme, acenou e murmurou algo para o motorista que partiu assim que ela fechou a porta do carro. "Ele só queria democracia"
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Estrelas de Papel (Disponível na amazon)
Fantasy1970. Ditadura militar. Sofia é mandada para um colégio interno no interior de São Paulo. Triste por ter sido separada da família, a jovem de 17 anos se vê desamparada em um colégio extremamente autoritário. Entretanto, o que mais intriga Sofi...