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Iara

Dois dias depois

Desde o dia do baile que Luana sumiu, o celular dela está desligado e isso está me deixando com muito medo e preocupada, não é normal, alguma coisa deve ter acontecido, meu Deus, que ela esteja bem.

— Cara, vou pedir ajuda pro Barão, e se for um sequestro? — eu não pensei em sequestro, o que alguém poderia querer? Luana mal tem dinheiro para sustentar uma casa sozinha.

— Duvido que seja sequestro — não queria falar isso porque se não fosse sequestro seria algo pior, e talvez ela não estaria mais viva a essa altura.

Não impedi Vivi e ela saiu supostamente para pedir ajuda pro Barão, se ele puder ajudar bom, mas não acredito que ele possa. Tentamos falar com a polícia mas somos moradoras de favela, o policial disse na minha cara que ela "deve estar dando por aí, quando se cansar ela volta para casa". Só não dei um soco naquele rosto imundo porque na prisão eu na poderia ajudar minha amiga.

Me joguei no sofá, é angustiante a sensação de não poder fazer nada, me sinto inútil, a Luana deve estar precisando de ajuda e eu não posso fazer nada.

Escutei meu celular tocando e era um número desconhecido, senti vontade de não atender mas a essa altura não tenho mais essa opção.

— Alô — falei mas não tive resposta, aff, só pode ser trote, quando eu ia desligar escutei um choro, e eu sabia que era ela.

— LUANA, AMIGA? VOCÊ ESTÁ BEM? FALA COMIGO, ONDE VOCÊ ESTÁ — eu também já estava quase chorando ainda mais por não ter nenhuma resposta, aquele silêncio estava me matando.

— Oi amorzinho — quase caí de lado, mesmo depois de três anos eu reconhecia aquela voz, era ele, Binho, mas como? Como ele pegou a Luana? Como?

— Bi...Binho? — gaguejei e senti as lágrimas caírem sem parar, eu sei do que ele é capaz, se não fosse Deus, eu mesma não estaria viva nesse exato momento.

— Isso mesmo, eu voltei vadia, achou que tinha se livrado?, vou te fazer pagar por me deixar inválido e por ser uma vadia, e quem vai sofrer primeiro é sua amiguinha — O mesmo ódio de sempre, mesmo sem tê-lo na minha frente eu sentia o ódio em sua voz, e eu sei do que ele é capaz.

Tentei falar e implorar para não fazer nada com a Luana mas a chamada foi encerada, eu não sabia o que fazer.

Sentei no sofá e só sabia chorar.

Me lembro como se fosse ontem quando o vi pela primeira vez, Fábio, ele era lindo, muito lindo, seus cabelos negros, lábios rosados, corpo magro! Era o filho dono do morro, na época eu tinha 15 anos, e ele 19, nunca pensei que ele fosse me notar, mas para minha surpresa ele me fez perceber logo que me queria. Nunca fui santa, e já sabia das coisas, mas nessa altura minha mãe estava muito doente, e devido à isso eu só ia para escola, casa, casa, escola, até que um dia decidi ir para o baile, e lá estava ele, lindo, não posso negar, e na mesma noite eu tive minha primeira vez, foi bom, muito bom, Fábio foi incrível comigo, me tratou como uma princesa e me prometeu o mundo. Ele já tinha planos de substituir o pai e ser o dono da Penha, e já falava que me queria do lado dele, como sua fiel, nunca tive essa ambição, mas eu o amava. Fábio se dava bem com minha mãe, e no mesmo ano, quando ela morreu, ele me apoiou bastante, fazia tudo para me agradar e quando estávamos completando um ano de namoro, Fábio me chamou para morar com ele, eu achava cedo, mas sem minha mãe eu estava sozinha no mundo e ele me dava todo conforto que eu precisava.

Mas tudo mudou...

Fábio, como eu o tratava, não era mais o meu Fábio, ele me apresentou o Binho, o traficante, antes, do meu lado ele não falava de drogas, não me mostrava nem uma arma, sempre me protegia do mundo que ele vivia.
Tudo começou quando ele sentia o poder, as meninas todas em cima dele, todos abaixando a cabeça para ele, isso o transformou, ele acabou usando as drogas mais do que vendia. Mas isso era o de menos, O pior foi quando a violência começou, Binho me espancava sem motivos, não que existam motivos para violência, mas com ele era algo fora do aceitável, ele batia em mim como se eu não fosse humana, várias vezes fiquei internada por sua violência. Ele nem se dava ao trabalho de se desculpar depois, vinha como se nada tivesse acontecido e me estuprava, porque sexto sem consentimento da outra parte é estupro sim! Eu já não sentia prazer, o homem que uma vez amei, me dava medo e nojo, ele me batia todos os dias, me insultava, me fazia me sentir um lixo, e quando eu pedia para ir embora ele me mandava para a puta que pariu.

Eu achei que não poderia piorar, mas aí o pai dele foi morto pelo grupo do Coronel e eles assumiram o Morro, pouparam o Binho com a condição dele não ficasse contra eles, ele não tinha o que fazer, todos estavam do lado do Coronel.
A raiva toda que ele sentiu por perder o Morro que um dia seria seu ele descontou em mim, e eu não podia deixar ninguém saber de nada, Luana já era minha amiga nessa altura mas não sabia de nada, nem conhecia o Binho, nunca deixei ela ir pra casa onde eu morava com o Binho, tinha medo dele fazer algo com ela, nos encontrávamos na casa da minha mãe.

A violência só aumentava, eu já não aguentava mais, eu já sou uma pessoa magra, mas fiquei mais magra ainda, dava para ver meus ossos, meu rosto estava horrível, acabei até cortando o meu cabelo, porque não tinha mais ânimo para cuidar dele e cumprido é mais difícil. Foi o pior período da minha vida.

Um dia acordei me sentindo muito mal e fui ao postinho do morro, descobri que estava grávida, eu boba, pensei que aquilo faria o Binho repensar, que faria ele voltar a ser o meu Fábio, eu não sabia que ele nunca mais seria o Fábio e muito menos meu.

Quando eu contei ele enlouqueceu, disse que eu era uma puta, vadia, vagabunda, filha da mãe, biscate que engravidei de propósito para prender ele, mas ele iria me dar uma lição, ele me bateu tanto, mas tanto, que eu desmaiava e ele continuava me espancando até eu acordar, batia de novo, desmaiava e acordava com ele me batendo, até que vi o sangue nas minhas pernas, eu pensei que estivesse morrendo, eu estava no chão e a dois metros de mim estava o sofá e nele a arma do Binho.

Ele se virou para pegar mais algum instrumento para me bater e eu não pensei duas vezes, "corri" com muita dificuldade até a arma e enquanto ele ainda estava de costas atirei.

Saí correndo aquela casa até a boca, pedi ajuda, eles eram contra a violência doméstica, mas por ser o Binho levaram ele para o hospital e eu, que estava cheia de sangue.

Eu havia perdido o bebê e qualquer possibilidade de algum dia engravidar, as lágrimas que eu não sabia que ainda tinha voltaram, chorei tanto naquele dia. A dor que era física naquele momento passou para o meu coração. Eu desisti de viver.

Depois de uns dias recebi alta e quando saí do hospital vi o Binho numa cadeira de rodas, aí me contaram, a bala atingiu a coluna vertebral, ele não poderia mais andar?! Eu sabia que ele iria se vingar mas não fiquei triste, ele me tirou a possibilidade de ser mãe e eu tirei a possibilidade de voltar andar, na minha cabeça aquele era o fim.

Coronel expulsou o Binho do morro depois que ele ganhou alta do hospital.

Voltei para a casa onde eu morava com a minha mãe antes e peguei apenas algumas coisas. Eu não tinha mais vontade de viver, pensei em tirar minha própria vida, mas quando eu tinha a arma apontada para a minha cabeça um vento estranho bateu e fez cair o retrato da minha mãe que estava na parede, aquilo não era normal, e eu percebi que eu devia lutar, não por mim, mas por ela.

IARA? — escutei o grito do lado de fora e sacudi a cabeça tentando espantar essa lembrança.

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Eu, Você e o MorroOnde histórias criam vida. Descubra agora