Daniel ligou para os pais de Miguel a fim de perguntar se poderia levá-lo para um passeio, depois do almoço do dia seguinte, numa mata que conhecia, a alguns quilómetros de distância da zona onde habitavam. Aquiesceram prontamente, até porque assim usufruiriam da tarde de sábado para os seus inúmeros compromissos, sabendo que Miguel ficaria bem entregue.

– Aonde vamos, professor? – perguntou o miúdo ansioso quando entraram no carro.

– É um sítio muito especial. Vamos andar um bocado a pé. Trazes... sapatilhas. Ótimo! Vamos ouvir mais sons para nos inspirarmos. Que achas?

– Espetacular!

Quando chegaram perto do local, Daniel estacionou na berma larga de uma estrada secundária alcatroada.

Calcorrearam um trilho estreito, rodeado de silvados, descendo até um caminho térreo mais amplo, circundado por campos de cultivo de milho, uns em pousio e outros com a terra nua amontoada em fileiras extensas, nas quais despontavam pequeninos rebentos verdes viçosos que se abalançavam esperançados para o ar.

O odor a estrume quase vegetal impregnava o ar.

Ao ver Miguel franzir o nariz, o professor informou:

– É adubo natural, ou melhor, bosta de gado.

– O Sr. Jacinto, o nosso jardineiro, às vezes cheira assim da boca, quando fala comigo.

– Ah, Ah! O melhor é manteres a distância.

– Pois. Sempre que o vejo dou a volta, mas, por vezes, esqueço-me...

Logo que avistaram um aglomerado de árvores em frente, o compositor avisou:

– Agora estamos a chegar. Vamos caminhar calados para ouvir os sons.

À medida que se foram embrenhando na mata densa, cujo trilho atapetado de ervas indicava ter sofrido muito pouco desgaste recente da Pegada humana, depararam-se com árvores jovens de troncos retorcidos que tentavam encontrar caminho por entre as copas mais frondosas de castanheiros e carvalhos de maior porte. A luz solar filtrada pelo luxuriante matagal chegava ao solo em tons esverdeados. Ouvia-se ao longe uma miscelânea de cantos agudos de aves. Daniel fez sinal ao aluno para se sentarem devagar na berma coberta de musgo, emitindo o mínimo ruído para que os pássaros se sentissem confiantes e encurtassem a distância entre eles, a fim de os poderem ouvir na perfeição.

Em pouco tempo, dezenas de sons, ora entrelaçados num torvelinho ascendente, ora emaranhados num conjunto intrincado, cortados de quando em quando por sons graves e secos de gralhas e pica-paus tamborinando nos troncos, inundaram a atmosfera.

Os olhos de Miguel estavam bem escancarados, dirigidos para o alto, denotando muito entusiasmo perante aquele concerto singular, que nunca tinha presenciado até ali.

Daniel retirou com cuidado da mochila um gravador antigo e começou a gravar a sonoridade da mata que naquele momento entrava ostensivamente em profusão. Ficaram algum tempo por ali, deixando-se envolver naquele momento precioso, inebriados pelo grande concerto natural que os sustinha na adorável plenitude de simplesmente ser.

Algum tempo depois, Daniel decidiu que era altura de retomarem o percurso e fez sinal ao Miguel para se levantar e prosseguir.

Habituados a estar em silêncio, nenhum fez reparos ao iniciar a marcha.

Uns largos minutos depois, começaram a descortinar auditivamente um burburinho em crescendo conforme as passadas iam conquistando terreno.

Miguel sorriu, era água corrente.

DEIXA A TRISTEZA IROnde histórias criam vida. Descubra agora