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Passei o dia todo pensando no que usar. Como eu nunca tinha ido àquela festa, não fazia ideia do que as pessoas vistiam. Grandes chances de fazer frio, mas quem queria ir todo empacotado pra uma festa na fogueira? Ainda mais na minha primeira festa. E também não queria que Pedro e Lucas me enchessem o saco por estar arrumada demais. Acabei de ir de short e camiseta, descalça.

Quando chegamos lá, vi que tinha feito a escolha errada. As outras meninas estavam de vestido, os pés calçados com tênis. Eu saberia disso se tivesse amigas na cidade.
- você não disse que as garotas vinham arrumadas!- acusei Lucas.
- você está ótima, deixa de besteira- disse ele, indo até o balde de cerveja.
Sim, vários baldes de cerveja. Nada de biscoitos ou marshmallows .

Eu nunca tinha visto um na vida real, só em filmes. Fui atrás de Lucas, mas Pedro me segurou pelo braço, com um aviso:
- não beba. Minha mãe vai me matar se eu deixar você beber.
Afastei a mão dele.
- você não tem que me deixar fazer nada.
- ah, deixa disso.
- quer ver?- retruquei, marchando até a fogueira.

Eu nem sabia se queria beber ou não, mas esperava encontrar alguns marshmallows, embora fosse bem improvável que John tivesse providenciado depois da bebedeira da véspera.

A festa da fogueira parecia bem legal na teoria, mas estar lá era outra coisa. Lucas ficou conversando com uma garota de saia jeans e biquíni azul, vermelho e branco, e Pedro conversava com John e uns outros caras que não reconheci. Achei que John fosse pelo menos me cumprimentar depois daquela flerte insistente da noite anterior, mas ele nem olhou na minha cara, e ainda por cima estava com a mão nas costas de uma garota.

Fiquei sozinha ali, perto do fogo, fingindo esquentar as mãos, mesmo que não estivessem frias. Foi quando o vi. Ele também está a sozinho, bebendo água de uma garrafinha. Parecia não conhecer ninguém por ali. E parecia ter a minha idade. Só que algo nele demonstrava segurança e conforto, como se fosse mais novo que eu, mesmo não sendo. Tive que olhar com muita atenção para entender o que era, e quando entendi foi quase uma epifania.

Eram os cílios, tão longos que quase batiam nas maçãs do rosto. Tudo bem que elas eram bem pronunciadas, mas os cílios não deixavam que ser enormes. O garoto tinha o queixo proeminente e a pele clara e macia, da mesma cor dos flocos de coco tostados que a gente colocava no sorvete. Toquei meu rosto e fiquei aliviada ao perceber que o sol tinha secado a espinha que aparecera dois dias antes. Aquele garoto tinha a pele perfeita. Pra mim, tudo nele era perfeito.

Ele era alto, mais alto que Henrique e Lucas, talvez até mais Pedro.
Era tão lindo que eu tinha vontade de desenhar o rosto dele- e olha que eu nem sabia desenhar.

Ele reparou que eu estava olhando, então tentei disfarçar. Quando olhei de novo, ele me pegou pela segunda vez. E só acenou, de leve.

Senti o rosto ardendo de vergonha. Não tinha alternativa senão cumprimentá-lo. Fui até ele e estendi a mão, dizendo "oi", mas me arrependi na mesma hora. Quem em sã consciência faz isso?

Ele apertou minha mão, sem dizer nada. icou só me encarando, como se estivesse tentando descobrir alguma coisa.
- conheço você de algum lugar- disse, por fim

Tentei não sorrir. Não é isso que os caras falam pra dar em cima das mulheres num bar? Fiquei me perguntando se ele havia me visto na praia, usando meu novo biquíni ultra sensual. Eu só tinha coragem de usar aquele biquíni uma vez, mas talvez tivesse sido justamente quando ele reparou em mim.
- talvez você tenha me visto na praia.
Ele fez que não com a cabeça.
- não... Não é isso.
Então não tinha sido o biquíni. Tentei de novo.
- quem sabe na sorveteria.
- não, também não...- depois de um tempo, foi como se uma luzinha acendesse na cabeça dele. Com uma risadinha perguntou:- você fez aula de Latim?
Quê? Como assim?
- hum... Já fiz.
- e por acaso você foi a convenção de Latim que acontece lá em São Paulo?
- fui.
Quem era aquele garoto afinal?
Ele assentiu, satisfeito.
- eu também. No nono ano, não foi?
- foi...

No nono ano eu usava óculos e aparelho. Odiei que ele me conhecesse daquela época. Por que não podia ter me conhecido só agora, de biquíni sensual?
- é de lá que eu conheço você. Eu tava tentando me lembrar...- ele abriu um sorriso- Meu nome é Lipe, mas na convenção de Latim era Sextus. Salve.
A risada subiu de repente pela minha garganta, como bolhas de refrigerante. Aquilo era meio divertido.
- salve Sextus. Meu nome é Flavia. Quer dizer, eu sou a Camis. Na verdade, meu nome é Camilla, mas todo mundo me chama de Camis.
- por quê?- perguntou ele, me olhando com interesse genuíno, como se realmente quisesse saber.
- meu pai me deu esse apelido quando eu era pequena. Ele achava Camilla longo demais. E todo mundo me chama de Camis até hoje. É meio bobo.

Ele ignorou esse último comentário, perguntando:
- por que não Milla? Ou Mih?
- não sei, talvez meu pai ache que tenha uma boa criatividade com apelidos- falei rindo.
- entendi.

- depois do latim, não quis mais fazer aula de outras línguas.- falou ele, meio cansado.
- eu faço aula de francês.
Lipe falou alguma coisa em francês, mas foi tão rápido que não consegui entender.
- quê?- perguntei, me sentindo idiota.
Eu tinha vergonha de falar francês fora da sala de aula. Conjugar verbos era uma coisa, mas falar pra valer, com fluência, era completamente diferente.
- minha avó é francesa, então falo desde pequeno- explicou ele.
- ah.
Comecei a me sentir meio boba, por me gabar de estudar francês.

- o "v" se pronúncia como "u".
- quê?
- em Flavia. O ferro é falar Flau-ia.
- ah, eu sei claro. Fiquei em segundo lugar no concurso de oratória. Mas Flauia parece meio bobo.
- eu fiquei em primeiro- comentou ele- comentou ele tentando não soar convencido. De repente me lembrei do garoto de camisa preta e gravata listrada que impressionou todo mundo ao declamar Cátulo e garantir a vitória. Era ele.- se acha bobo, por que escolheu esse nome?
Suspirei.
- por que já tinham escolhido Cornelia. Todo mundo queria ser Cornelia.
- e todo mundo também queria ser Sextus.
- por quê?- perguntei, mas me arrependi na mesma hora.- ah. Esquece.
Lipe riu.
- o humor dos garotos do nono ano não é muito sofisticado.
Eu ri também. Então perguntei:
- sua casa é aqui perto?
- alugamos uma casa a dois quarteirões daqui. Minha mãe meio que me obrigou a vir pra essa festa.- explicou ele, coçando a cabeça.
- ah.
Eu queria parar de dizer "ah", mas não consegui pensar em nada melhor.
- e você? Por que veio a festa Camilla?
Levei um susto quando ele falou meu nome verdadeiro. Pareceu tão natural pra ele. Eu me senti um pouco como no primeiro dia de aula, mas gostei.
- não sei. Pra ser bem sincera, acho que só vim porque John me convidou.

O diálogo vai continuar, mas em outro capítulo, pois esse está longo, até o próximo.
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