2 - A Banda

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Encontrei o Karuma bolando um para acender mais tarde e já estávamos chegando à rua da vila, quando a barca negra inconfundível virou a esquina. Essa era nossa viatura, uma opala caravan antiga que o Urubu ganhara de seu avô Epaminondas e tivera a ideia foda de transformá-la em um carro funerário. Compramos a tinta branca, a Nicole sabia fazer as letras bem certinhas. Pintamos no nome da nossa banda nas portas e no vidro atrás. Urubu colocou uma manopla de câmbio em formato de uma caveira metálica. O resto deixamos como estava. Toda preta com os bancos de couro vermelho. Nosso carro, nossa casa, nossa cama, nosso amigo caronte negro.

Com um carro de quase cinco metros de cumprimento ano 1978 virando a esquina com um caixão no teto, a gente ficou bem conhecido nos picos da pauliceia. Não tinha bar de rock que não conhecia os caras da Funerária do Rock. Era da hora estar lá em cima do palco, olhando para todo mundo. Embora nenhum de nós quisesse ficar famoso com isso, pois a nossa ideia era tocar para os amigos, descolar uns goros de graça e pegar umas minas. Íamos de Iggy Pop a David Bowie, de Cazuza a Renato, de Led Zepelim a Janis Joplin e essa mistura sempre dava briga, entre os que nos assistiam e entre a gente mesmo. Mas, apesar disso, o melhor mesmo era ter a certeza que ao meu lado estavam meus amigos. Eu sentia uma segurança incrível quando dava um acorde na guitarra e ouvia a bateria puxando a música sem ao menos eu dizer qual era. O primeiro show foi do lado da escola, na birosca do Pelé. Caiu a maior chuva, mas foi divertido. Na semana seguinte o colegial todinho cabulava pra ver a gente tocar. Quando eu falo pro meu filho que nem ônibus conseguia passar na rua de tanta gente ele não acredita. Urubu voando na bateria, eu tocando male male na guitarra e a Nicole destruindo no baixo e vocal. Tornamo-nos uma equipe.

Para quem é mais velho e pegou essa parte boa do final dos anos oitenta, vai poder atestar sobre a lenda daquele pedaço da cidade. Tinha uma cena acontecendo, com jovens que se encontravam toda semana, entre desenhistas de fanzines, meninas e caras fazendo poesias, tinha gente confeccionando a própria roupa pra vender em barraquinhas na porta do rock, com muitas cores e spikes, couro e alfinetes. Alguns moleques que escreviam contra o sistema realizaram seus sonhos de serem jornalistas. Outros tiveram a sorte de morrer antes de envelhecer o bastante para se tornarem velhos filhos da puta votando em outros filhos da puta conservadores. Urubu queria insultar a coisa toda. Tirar as pessoas da zona de conforto, provocar e causar aversão. Enquanto eu queria falar da vida, de pássaros voando e amor livre.

- Você é um burro alienado! Ele gritava enquanto virava a fita do Sex Pistols.

- Grande bosta, ficar escrevendo sobre o tédio de não fazer nada e olhando feio para as pessoas que passam na rua.

Os mais velhos só faziam bosta atrás de bosta, crise econômica, inflação, dívida externa, puta falso moralismo com aquelas ideias retrógradas e a gente ficava puto com tudo isso. Resultado: a maioria ou ia parar na fanzine ou sob a forma de protestos no palco, como a vez que chamaram a gente pra tocar na quermesse da igreja a pedido da avó do King. O padre todo caretão pediu uma foto da banda pra colocar nos cartazes. A gente tirou uma bem arrumadinhos e mandamos para zoar. Na hora do show o Urubu ficou muito louco de quentão, declamou Flores do Mal do Baudelaire e terminou mostrando a bunda para uma centena de senhores e senhoras da paróquia. Depois disso a vó do King não falou mais com a gente.

Ainda hoje, passados trinta anos, pelo menos uma vez por ano alguém me para na rua perguntando quando a Funerária do Rock vai voltar a tocar. Naquela época não tinha internet nem porra nenhuma, então o jeito era avisar no boca a boca onde ia ser o rock. A Nicole produzia uns fanzines e a gente distribuía, mas bastava o pessoal fazer um tour pelo bairro procurando a caravan com caixão no teto.

Mas porque diabos aqueles moleques andavam com um caixão acoplado ao teto de um carro funerário? Era a cereja do bolo. O Urubu sonhou com isso uma noite, fez um desenho na sala de aula e resolvemos por em prática. Lembro como se fosse hoje:

- E onde vamos arrumar um caixão, gênio? Perguntou o King numa noite de campeonato de Atari.

- A gente pode pular no Cemitério da Vila Formosa. Respondeu a Nicole enquanto pintava os fanzines da semana.

Eu achei que ela estava zoando, entretanto, a Nicole era gótica, mas depois da segunda vodka ela só cantava The Runnaways e The Slits e o Urubu de vez em quando gostava de comprar as ideias malucas dela, principalmente quando eu era contra, só pra ver eu ficar nervoso. E lá fomos nós, subindo a João XXIII com uma garrafa de vinho que pulava de mão em mão. Pulamos o famigerado muro branco e vocês não têm noção de como aquele cemitério era horrível à noite.

- A culpa é minha! Falei, enquanto pulava. Eu que sou maluco de ir nas ideias de vocês.

- Cala a boca e segura a pá! Gritou Urubu do outro lado.

- Ô seu filho da puta! Quase acertou em mim! Berrei.

Procuramos um túmulo novo. E tinha pra escolher, aquele já era o maior cemitério do país. Tinha uma fileira de coroas de flores novas. Indicando que o enterro tinha sido naquele mesmo dia.

- Deus me livre, não vou mexer em flor de defunto! Protestei.

- Mas é uma mariquinha mesmo. Completou Nicole. Sai daí então, não atrapalha. Urubu, esse parece ser o mais novo. Bora cavar!

O caixão era bonitão. Todo preto, com detalhes dourados. Umas alças grandes e pesadas. Puxamos com dificuldade, mas depois de desalojar o defunto bigodudo do seu paletó de madeira, devolvemos o coitado pro buraco. Eu ainda puxei uma oração pedindo perdão pra ele por aquele desrespeito hediondo, a Nicole me acompanhou, o Urubu somente observou. A treta foi subir o caixão no muro, mas o carro já estava nos esperando do outro lado. Sei que hoje falando pode soar bem babaca o que fizemos, e sabemos disso. Mas a gente era bem imaturo, desmiolado mesmo, com parcos remorsos. De toda forma, durante anos eu visitei o túmulo do bigodudo para rezar por ele e sei que o Urubu também o fez, apesar de nenhum dos dois saberem mais onde ficava a verdadeira tumba. 

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