10 - Os Cariocas

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E assim, naquele dia em cima do Farol de Encruzilhada das Almas, pensei eu que a sorte do King ter amarrado os calçados fora nossa. Uma sorte ter um guardião da turma como o Karuma.

- Olha só, um bando de bichas tocando música de bicha. Falou de repente um sujeito de jaqueta jeans e cabelo amarelo que vinha acompanhado de dois outros caras, todos mais ou menos de nossa idade, subindo pela trilha do farol.

- Aposto que são paulistas, olha a pinta do espetado. Respondeu o outro, de cabelo comprido escorrido, que vinha caminhando ao lado do primeiro rapaz.

- Eae, parceiros, chegaram agora? Disse um terceiro, este de cabelo arrepiado estilo surfista.

Eram uns caras no estilo de praia, cabelos clareados, óculos escuros, de bermudas e chinelos. Chegaram pelo outro lado de onde vínhamos. Urubu só lançou um olhar e ali mesmo ficou, sem se mexer. Não estávamos para briga.

- Então, as madames são de onde? Perguntou o rapaz bombado de academia com a jaqueta jeans.

- Da puta que te pariu. Respondeu a Nicole, que não tinha paciência para esses estilos.

- Calma, deixe as meninas falarem. Disse um rapaz de cabelos compridos escorridos, com uma carpa tatuada na canela.

- Somos de Sampa, respondeu King, olhando para o arrepiado, quer um pouco de iogurte?

- Aí, eu não disse que as meninas eram paulistas.

- Mas então, eu provoquei, onde fica o morro de onde vocês vieram? Só pode ser do Rio de Janeiro. Lá tem metrô?

- Putz grila, olha só o paulista tirando onda. O que você acha disso, Caê?

- Nem sabia que tinha rock em São Paulo. Devolveu Caê. O que eles acham que é rock mesmo? Ultraje a Rigor?

Todos riram da gente. Caê era o rapaz de cabelos arrepiados. O outro, do cabelo escorrido, segundo entendi é o Renato. O bombado de academia da jaqueta jeans era o Flávio. Claro que havia uma disputa entre o rock carioca e o paulista, eles zoavam nossas bandas, a gente zoava a deles e todos zoávamos as bandas do sul. Mas a galera de Brasília era bem vinda em todos os outros três lugares. Sabíamos que a cena do gênero havia sido incrível no Rio, com o Circo Voador expondo os máximos da música. Mas tínhamos muito mais que Ultraje e Ira. Exportamos influência com Os Mutantes, fora os Secos e Molhados, sem entrar nos enormes méritos do Ratos de Porão e Velhas Virgens, RPM e Titãs, pra não entrar no mérito das bandas pequenas que a gente curtia desde a época do Napalm. Imagino que eles sequer tivessem conhecido Vinicius de Moraes, mas imitando sua fala em relação ao samba, tentavam em vão sepultar a cena do rock paulista. Nunca fomos o "Túmulo do Rock", apesar de reconhecermos a enorme importância do cenário do Rio de Janeiro e Brasília, mas só quem já desceu a baixa Augusta, já frequentou o Madame Satã ou enlouqueceu na Led Slay sabe o que estou dizendo. Quem cantou o Cabeça Dinossauro inteiro por milhares de vezes, e até posteriormente, já mais velhos, no Kazebre revendo todos estes caras, vai poder atestar que nós, adolescentes dos anos oitenta, que agora quase jovens senhores curtindo o bom e velho rock in roll nos motoclubes da cidade com seus filhos e netos, podemos dizer: o rock é paulista!

Os cariocas ainda tiraram um sarro da gente por um tempo, sem nossa resposta, até que se cansaram e foram descendo a montanha, vimos de longe eles entrarem num Monza vermelho e descer rumo ao centro.

- Carioca folgado, ein, Uruba. Tava bom de dar um sacode neles. Provocou o King, que tinha guardado a noção antes de reencarnar.

- Pois é. Fim de semana está só começando, já viajei muito com meu vô pro Rio. Eles não querem briga não. É só rixa comum entre paulista e carioca. Essa provocação é de costume. Deixa os caras, depois a gente dá uma zoada neles.

- Olha lá, a Nicole dormiu em cima da laje. Interrompeu o Karuma.

Todos dormimos. Como o sol do inverno não fere a ponto de queimar a pele, pelo menos não naquele dia ameno, acredito que apagamos até quase meio dia. Lembro que a mudança de altitude interferiu bastante, aumentando ainda mais nosso cansaço. A longa viagem durara a noite toda. Hoje você consegue sair da capital paulista e chegar à cidade da montanha em quatro horas e meia, mas na época, com a rodovia em pista única, a história era bem diferente. Somente a estradinha de terra de Pouso Azul a Cruz Verde e de lá à Encruzilhada levava quase duas horas.

Tempos depois, já na praça da matriz, em frente à igreja antiga e linda, tocamos alguns sons do Raul Seixas com um rapaz que, depois de uns vinte anos ficaria conhecido como o cantor Cachoeira. Algumas pessoas me falaram que o Cachoeira sequer conhecia a cidade nessa época, mas eu posso jurar que naquela tarde só poderia ser ele mesmo. De toda forma, tocamos quase o repertório todo do lado B de Raulzito sentados em volta de uma daquelas estátuas de antigos coronéis.

- Coronel Emiliano Ponciato! Fundador da cidade e valente comandante na luta armada que culminou com a independência de Encruzilhada das Almas. Leu Urubu ao pé do busto.

- Coronel é o meu chapéu! Gritou o King, derramando cerveja em plena roupa.

Ao lado da igreja tinha uma pedra enorme em formato de um grande navio. Parecia a popa do Bateau Mouche. Grandona a pedra. Esse rapaz me chamou de canto e falou algo parecido com ver a terra girar e flutuar no universo. Isso me ajudou a entrar na vibração do local, na energia. Ele falou e eu realmente imaginava, como seria flutuar no Universo. Senti-me o Carimbador Maluco, com aquele navio esquisito que tinha um sanitário no convés.

- Aqui aconteceu muita coisa, garoto. Disse dando um trago no seu cigarrinho. Muitas histórias de amor e de perda.

- Bonito mesmo o lugar. Respondi.

- É mais que bonito. Vocês deveriam ter conhecido a Mariana, a louca. Ou o Léo Cátria, o gigante. Eles contariam pra vocês quantas histórias aconteceram aqui.

- Deve ter sido massa. Falei.

- Ali mesmo onde vocês estão sentados, tinha uma jabuticabeira enorme. Muitas pessoas morreram ali, sabia?

- Sério?

- Olha pra minha cara, garoto. Tenho cara de mentiroso?

- De jeito nenhum.

- Ficaram dançando até a morte!

- Foda!

Descendo da pedra do navio, encontrei Karuma parado na calçada olhando para o coreto vazio.

- Tá vacilando aí, mano?

- O quê?

- Tá moscando?

- Led, vem cá. Olha pro coreto.

- Tô olhando.

- O que você está vendo?

- Nada.

- Justamente.

- Tá doidão, já?

- O pior que não, Led. Estou dizendo porque há exatamente dez segundos tinha alguém ali, e estava olhando para mim.

- Então foi embora, ué.

- Não foi não! Era um índio. Estava acenando pra mim. E de repente sumiu!

- He, he... você tem que maneirar na maconha, já falei isso pra você.

Entramos em uma pequena galeria cheia de lojinhas de artesanato onde nos informamos sobre o show. O Morte Súbita, pelo o que a atendente falou, já estava na cidade e iria tocar no espaço de eventos, antiga fazenda dos Ponciatos. O King, que funcionava às vezes como o tesoureiro da Funerária do Rock já confirmou que realmente os ingressos dados pelo homem de chapéu do Sherlock e botas de vaquinha eram verdadeiros e continuamos a descer a cidade.   

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