4 - King

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Era uma daquelas noites glaciais, densa, nebulosa e assustadora. Alguns animais passavam voando em frente ao carro e eu sentia muito frio, pois o Karuma estava com a janela aberta pra fumar.

- Fecha essa janela, Karuma. Pelo amor de Deus! Tô congelando aqui!

- Relaxa, brother. Já estou terminando. Só mais um peguinha e pronto.

Tinha vindo com uma jaqueta jeans fina, mal dava pra aguentar a noite na rua, quanto mais na estrada. Naquelas épocas, sei lá o porquê, parecia que, quando se fazia frio, era de gelar até os ossos. Eu tentava me esquentar entre o King e a Nicole, mas parecia inútil. O Urubu continuava impávido no volante do Caronte. O plano era chegar pela manhã na cidade das montanhas e arrumar um lugar seguro para estacionar. O show iria ser à noite e deveria durar toda a madrugada. Não sei o porquê, mas, de repente, apesar da intuição de que algo de errado estava acontecendo, comecei a sentir a magia. Essas coisas acontecem, você vai se contagiando pela energia da galera, e quando vê, está mais do que animado, querendo chegar logo. Era uma ansiedade que vinha crescendo conforme a caravan diminuía os quilômetros que separavam meu estado, a Pauliceia, de Minas Gerais, a terra das lendas e mistérios. A estrada naquela época bem se parecia com o que presenciamos nos filmes de terror. Estreita, mal iluminada e poeirenta. A duplicação dessa federal demoraria ainda anos para ser concluída. Mas, apesar de toda essa dinâmica cruel do Urubu me convidar a ir ali na tia dele apenas e decidir no meio do caminho uma viagem interestadual. Mas foi exatamente depois de passarmos por Bragança Paulista, decidi de vez comprar a ideia da viagem e relaxar.

Éramos uma equipe, e depois de anos de viagem, tínhamos a oportunidade de viajar todos juntos, pela primeira vez. Isso na minha cabeça era incrível! Tínhamos ido ver o Queen no Rock in Rio, mas o vô Epa que havia levado, e foi apenas o Urubu, a Nicole e eu. Tudo era novidade! Um carro antigo com uma pá de coveiro e um caixão em cima voando pela estrada em busca de aventuras e sonhos! Eu estava eufórico.

Estávamos em uma ladeira descendo quando observamos uma placa antiga logo à frente informando "Bem vindo a Minas Gerais". Lembro-me bem desse sentimento e já ia perguntar pro Karuma se faltava muito para chegar, quando o King colocou a cabeça para fora, encheu seus pulmões e gritou:

- Vamos pra Minas!

King era o Ralf. Nosso amigo desde o prézinho. O típico cara desastrado com a vida. Não tinha nenhuma maldade, porém também não tinha noção. Na sala era o moleque magrinho com aparelho nos dentes. O eterno aparelho. Acho que ele ficou uns dez anos com ele. O Ralf tinha uns mistérios que a gente nunca entendia, como quando o vimos saindo de um curso de idiomas.

- Eae, Ralf. Resolveu sair do verbo to be?

- Eu já faço inglês aqui há sete anos!

- Isso explica seu sumiço aos sábados. Ganhei a aposta, Gabriel!

- Não vale!

- Ei, o que vocês apostaram?

- O Gabriel apostou comigo 200 contos que você era adventista do sétimo dia.

Observamos todas as suas mudanças no decorrer dos anos. Ele sempre andava com as colegas da Nicole no colégio. A gente sempre pegava no pé dele por isso. O Ralf nem ligava. Deixava a gente zoar. Nunca perdia a paciência, aliás, poucas vezes o vi nervoso. Toda sala precisava de um palhaço, e ele fazia bem o papel. Imitava os professores, contava umas piadas ridículas e fazia umas danças engraçadas. Além de trazer uns bolos que a mãe dele fazia pra dividir com a galera. Todo mundo da sala gostava do Ralf.

O problema é que uns moleques de outra sala implicavam com ele. Com o cabelo dele, o jeito dele andar e ficar sempre com as meninas. Na verdade acho que aqueles perdedores tinham inveja do jeitão extrovertido do Ralf. Sempre com notas boas, mais pela facilidade de comunicação que ele tinha com os professores. Um dia estávamos jogando bola na quadra e ele na sala fazendo a lição da Margot, a professora mais gostosa de toda a história da escola. Quando uns babacas do oitavo ano invadiram nossa sala e quebraram o Ralf na porrada. Tudo sem motivos, apenas para afirmarem suas frágeis masculinidades. A Nicole saiu correndo para nos chamar. Ao chegarmos, nosso amigo estava agachado em um cantinho da sala chorando em miúdo, humilhado pela sua inocência. Bem, nessa época não havia essa coisa de bullying, a gente resolvia essas situações era no soco mesmo. O Urubu, que ainda era apenas o Gabriel maluco, já tirava umas manobras de skate e sabia brigar, a Nicole já tinha sua fama de garota sombria e eu, apesar de não saber tocar porra nenhuma, andava sempre com um violão velho que troquei numa bicicleta que havia ficado pequena para mim lá na feira do rolo.

Esperamos a hora da saída e fomos seguindo o King, na época Ralf, em seu caminho para a casa. Tomamos cuidado para não sermos vistos. Bastou atravessar a avenida que avistamos os bastardos, que estavam esperando nosso amigo para mais uma sessão de agressões. Ah, mas vocês precisavam ter visto. O mais forte deles, o Braga, bem, esse era o sobrenome dele, o nome não lembro, esse Braga nem conversou, apenas empurrou nosso amigo Ralf no chão. Quando ele se preparava para dar o primeiro soco, mal teve tempo de olhar para frente e ver quem vinha correndo em sua direção. Era o Gabriel, segurando nas pontas do skate, pronto para quebrá-lo bem em sua cara. Eram quatro os trouxas. Eu não era tão alto quanto os alunos da oitava série na época, mas já compartilhávamos da cultura do primeiro soco. Acerte para derrubar. Foi o que fizemos. O violão se perdeu, literalmente destroçado nas costas do Carlos Alberto. A Nicole batia como um homem adulto, focando nas partes frágeis dos inúteis, Gabriel permanecia com o Christian em seus braços, numa gravata asfixiante, já que o Braga já estava dormindo o sétimo sono depois da skaitada. E assim aconteceu. A escola toda soube da vergonha que passaram, quatro trogloditas da oitava apanhando que nem criancinhas de dois meninos e uma menina da sétima série. A mãe do Braga ainda apareceu lá na escola para reclamar os dentes que o filho babaca perdeu, mas aí a gente já não precisava mais se preocupar com essa galera.

A partir daí seu apelido se tornou banguela e nunca mais mexeram com a gente. O Ralf, depois desse dia, entrou no caratê ou kung fu, acho que foi bem na época que saiu o Karatê Kid. Lembro que ele chegava na sala e a gente começava a cantar a musica do filme. Quando entramos no ensino médio e mudamos de escola, ele começou a fazer musculação, andar com uma turma diferente, descer para a praia. Até aprendeu a surfar, ganhou alguns campeonatos. A gente ficou com ciúmes dessa galera.

Nessa época andávamos um pouco distantes. Já ensaiávamos para a nossa banda e ele curtia a turma de caiçaras. Só quem o via fora da escola era a Nicole, que tinha o Ralf como um irmão. Ela tinha dado uns beijos nele com doze anos, descabaçando a boca do nosso amigo. Mas após isso, os dois manifestaram uma amizade acima de qualquer malícia. Era comum, quando a gente acampava na praia, os dois dormirem juntos e nada acontecer. Viraram realmente irmãos. Anos depois, King seria o padrinho do filho da Nicole.

Foram nesses tempos que ele ganhou o apelido de King, por suas manobras com as ondas. No começo achamos estranho e babaca, mas depois que o primeiro da gente, ainda por sarcasmo, chamou o Ralf de King, nunca mais o chamamos de outra coisa, era até difícil lembrar o nome dele quando ligávamos em sua casa e seu pai atendia:

- Boa noite, seu Raimundo. O Ki... quer dizer, o Ralf está?

Era embaraçoso, mas depois descobrimos que o próprio pai dele o chamava de King. Ficou mais fácil desde então. Ele estava coroado.

King virou um rapaz musculoso e começou a se dar bem com outras galeras, por conta de seu humor genuíno e inocente. Era uma radiação de risadas quando ele estava perto de todos que o adoravam. Quem não conhecia o King? Mas somente a gente conhecia de verdade o Ralf. O menino tímido que chorou encolhido naquele dia na sétima série. O cara que se divertia com a avó no bingo todas as semanas. Criava receitas incríveis na cozinha e seu quarto brilhava de arrumação. Era cuidadoso com a imagem, a saúde e tudo que era seu. Nunca lera um livro ou revista, pouco ou nada sabia de rock, não tinha ideologia política e mal se dava conta que tínhamos saído de uma puta ditadura militar. Mas tinha o maior coração que um ser humano poderia ter. King era, sem nenhuma dúvida mesmo, um rei. Um rei que agora estava com a cabeça para fora da opala caravan gritando como um insano. 

Funerária do RockOnde histórias criam vida. Descubra agora