Olhei para o Karuma, que naquela época usava um cabelo maneiro, estilo Apolo do Rock Balboa. Sim, o Karuma é negro, tinha uma altura média para sua idade, que era a mesma que a nossa, e adorava tocar violão. Mas não era da banda, gostava de tocar sozinho. Do punk o Karuma só curtia Bad Braim, de resto preferia o reggae. Mas na época o punk e o reggae conversavam de certa forma. Falavam da politização dos jovens, contestações inerentes ao novo mundo que estava chegando, de mudança social, essas paradas.
Estava sentado bem na ponta da laje de concreto em frente ao farol dedilhando No woman, no cry. Karuma era foda! Tocava lindamente. Nos anos oitenta, ainda que no final deles, todos tocavam violão, uns mais, outros menos, mas não existia roda de jovens sem um violão no meio. Claro, já tinha a música eletrônica, o rap, o samba e tal, mas a grande maioria era roqueira mesmo. E a melhor forma de se ganhar meninas era tocando violão. E nisso o Karuma era especialista. O cara que já demonstrava de berço uma sensibilidade maior para o violão. Nós sabíamos tocar rock, apenas três ou quatro acordes, já ele tocava de tudo. Nosso amigo era da MPB. Dedilhava bossa nova, puxava músicas dos grandes festivais, Milton, Caetano, Gil, Chico... Disse que aprendeu com seu pai, mas nunca nos apresentou e não mais falava sobre o velho. Karuma, quando pegava o violão, ganhava alma, cantava com a essência do que ele era.
- Mano, daqui da pra ver até o Cemitério da Vila Formosa, brincou King.
- Dá pra fazer um som legal aqui em cima, ein? Definiu o Urubu. Qualquer dia vamos fazer um show aqui! No pôr do Sol.
- Dá uma paz... Nicole visava o horizonte de uma maneira diferente. Tinha poesia em seu olhar. Nossa amiga, às vésperas de completar dezessete anos, parecia começar a fazer as pazes com a vida. É engraçado, ver a Nicole que cortava os pulsos, que se trancava por semanas em seu quarto, pintava as paredes de preto, a mesma que se dizia ateia e que deixou todos loucos pela loucura de sumir da sua casa por três dias. Tínhamos quinze, ela catorze. A história continuou, com ela odiando ainda mais a vida, e a gente segurando sua onda quando as crises vinham. Por isso, acreditei, era estranho ouvir a Nicole falar de paz.
- Ruma... toca uma diferente pra gente? Pediu nossa amiga.
Karuma, que tinha acendido seu cigarrinho maroto, deu uma puxada forte, olhou para as montanhas, apagou o beque, guardou e começou a tocar uma bonita do Secos e Molhados. Deitei na pedra inclinada que compunha um dos lados da construção, fechei os olhos e viajei na canção do meu amigo. "Dizem que sou louco, por pensar assim. Se sou muito louco, por eu ser feliz"
Vocês devem ter percebido que o Karuma não figura entre nossas memórias de infância. Conhecemos o figura do Karuma quando já curtíamos a cena do rock paulistano. E as circunstâncias dele ter cruzado nosso caminho são dignas de criar nota. Éramos quatro. Houve uma época em que nos tornamos frequentadores da antiga Praça da República, principalmente aos sábados quando foi comum chegar no fim da tarde e ficar até o domingo de manhã, quando saía o primeiro metrô para casa. Eu era office-boy na Barão de Itapetininga, vivia perambulando pelas ruas com a pasta cheia de documentos. Entrega, leva, protocola, volta, leva novamente, um trabalhinho dos diabos. Mas, como todos sabem, economicamente os anos oitenta foram desastrosos, economicamente perdido. Era uma época em que a gente só via carne vermelha quando caía na rua e ralava o joelho. Eu tinha que ajudar em casa, ou pelo menos me ajudar, comprar minhas roupas, pagar meus rolês, todo mundo da minha idade trabalhava e estudava à noite, pelo menos no meu bairro. Fiz o que muitos jovens da minha geração fizeram. Hoje nem sei se existem ainda office-boys, as transações se tornaram muito rápidas, a maioria vai por e-mail ou é transportada por motoboy. Acho que a profissão acabou por sermos muito lentos, eu mesmo passava o dia em um fliperama que tinha na rua Sete de Abril. Quando não estava gastando o dinheiro do ônibus com fichas de jogos, passava horas na galeria do rock de conversa fiada com outros boys. Resultado do futebol, música, mulher pelada, tudo era motivo para atrasar o trabalho. Uma vez o gerente foi me buscar dentro do fliper, deu aquele esculacho, eu respondi, discutimos voltando para o escritório e ali mesmo acabou minha trajetória de porta-documentos oficial.
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Funerária do Rock
غموض / إثارةCinco jovens da cidade grande encontram mistérios indecifráveis quando decidem assistir a um show de rock numa cidadezinha do interior.