12 - Dom Vladimir

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Ralf, ou melhor, King, já estava pronto para colocar a cabeça dentro da boca do búfalo empalhado quando a dona Helga voltou abruptamente, acendendo as velas de um candelabro antigo. Olhou para King, sorriu. Pediu ao criado, que vinha logo atrás, para fechar as cortinas, e solicitou que aguardássemos um pouco mais.

- Lorde Draco é um homem muito simples, mas gosta de receber visitantes com certa reverência.

A tarde de sábado já vinha se encaminhando para um triste crepúsculo quando dei uma última olhada pela janela e fechei as cortinas. Outra porta pesada, com maçanetas douradas e antigas, mexeu-se atrás da gente, de onde observamos a figura que evidentemente só poderia ser o senhor Vladimir. O homem veio caminhando devagar pela sala, parou em nossa frente, lançou um olhar rápido a cada um, e um repulsivo vislumbre um pouco mais demorado sobre a Nicole. Digo isso porque eu estava ainda próximo à janela, entre o homem e os meninos, que estavam ligeiramente de costas para ele. Sentei-me novamente entre a Nicole e o King. O Urubu e o Karuma estavam distribuídos, cada qual em uma poltrona, em diagonal com o sofá maior. Em frente à gente, uma poltrona maior, com detalhes antigos e finos, centralizada entre nós e um tapete macabro de pele de urso. Perdi um tempo olhando aquele insuportável carpete, que outrora de certo tenha sido um enorme animal, abatido provavelmente pelo próprio dono da casa, aquele ser que nos olhava sem emitir palavras.

Eu sei, faz muitos anos, essa festa está maravilhosa, preciso de mais um gole desse vinho para continuar a narrativa. Mas as condições que se deram essa reunião ainda permanecem de maneira vivaz em minha memória, esteja eu acordado ou dormindo.

A aparição sinistra permanecia impávida observando-nos silenciosamente, buscando detalhes imperceptíveis com a gravidade de seus olhos duros e acinzentados. Seu rosto era pálido e de formas retilíneas, com um nariz perfilado, queixo protuberante, com mandíbulas retangulares, desenhando firmemente seu rosto grave, coroado por cabelos grisalhos, denotando sua chegada ao que pareciam uns cinquenta anos. Mas de seu rosto, todas essas características eram secundárias, o que mais chamava atenção era, sem dúvidas, uma enorme cicatriz, que descia de sua testa até o queixo. Um corte que parecia cirúrgico. Apesar de seu tronco forte por baixo do terno fino, o que mais lhe chamava a atenção eram suas mãos monstruosas. Enormes em relação ao restante do corpo, mãos de gorila, como se esmagassem pedras ou ossos.

- Gostou?

- Perdão, não entendi. Respondi assustado.

- Do carpete. Continuou o ser estranho. Trouxe de minha passagem pelo Canadá. Morei lá por uns anos, antes de fixar-me no Chile para, em seguida, imigrar para cá.

Apesar de sua pronúncia quase perfeita do português, via-se vagamente que o homem viera de fora, entretanto, seria inútil tentar descobrir de onde.

- Ajudamos um membro da irmandade, disse o Urubu, ele disse que a gente poderia passar uns dias aqui. Inclusive nos pediu que lhe mostrasse esse amuleto. Continuou meu amigo retirando o "presente" de seu colete. Ele disse que era de Piracicaba... Piraponga...

- Pirapora? Completou o homem.

- Isso! Continuou o nosso amigo. Pirapora.

- Provável que seja o nosso antigo membro, Nestor.

- Esse mesmo, a gente estava comendo uma coxinha, disse o Urubu olhando jocosamente para mim, quando aconteceram algumas situações ruins e o ajudamos contra um casal de psicopatas.

- Fizeram bem, fizeram bem... Este castelo serve à Ordem do Dragão. Um grupo muito unido e antigo.

Enquanto o enorme homem parecia prestar atenção ao nosso relato, percebi que Helga e o criado permaneciam inquietos. Este, com um pouco mais de um metro e quarenta de altura, parecia um monstrengo mal concebido. Terminamos de contar o que houve e foi confirmada a permissão de nossa estadia no castelo. O proprietário se apresentou como Vladimir Ruthwig Draco.

- Estive a maior parte de minha vida na Europa. Cheguei ao Brasil há alguns anos e confesso, a energia desse lugar me cativou! Mandei reformar essa humilde moradia, e vivo aqui desde então. Não costumo receber muitos hóspedes, embora desejasse ter alguém para conversar ou jogar xadrez.

- O Urubu é bom nisso, tentou puxar assunto o King.

- Não ligue para os modos do nosso amigo, respondeu o Urubu tentando parecer educado, mas gostaria sim de jogar umas partidas com o senhor.

Enquanto num primeiro momento a aparência do seu Vladimir era repugnante, ao passar do tempo, em contato com sua conversa mansa, parecíamos seduzidos pelos seus modos meticulosos. Todos nós estávamos meio que admirados com o homem, menos o Karuma, este parecia um gato perto do banho. Mas, para minha surpresa, a pessoa mais interessada nas palavras do anfitrião era a Nicole.

- Seu Vladimir, agradecemos sua generosidade, e prometemos não incomodar.

- Podem me chamar de Dom. Assim recordo minha terra. Dom Vladimir. Faz-me lembrar do meu povo.

- Beleza, seu Dom, continuou King ainda olhando para o búfalo na parede.

- Vocês devem estar cansados, vou mandar providenciar os quartos. Logo os chamo para jantar, e poderão continuar seus passeios pela cidade. Ela fica esplêndida nesse período do ano. Principalmente à noite.

O homem pediu a Helga que preparasse nossos quartos. Levantou-se e já estava se retirando pela porta de onde veio, quando voltou e fez uma observação:

- Sintam-se em casa, façam o barulho que quiserem. Só tenho uma condição. Disse mudando seu tom, endurecendo a voz. A partir do momento em que entrarem em seus aposentos para descansar, não saiam de lá em nenhuma hipótese, a não ser que Helga os chamem. Entendam, quando cheguei em Encruzilhada com meu fiel ajudante, o Aragão, esse castelo não era mais do que pedras abandonadas. Planejei cada detalhe da obra e me assegurei que ninguém soubesse os segredos dessas portas centenárias. Troquei algumas vezes de arquitetos e engenheiros para que as plantas do castelo estivessem apenas sob o meu poder. Entendam, há muita gente mal intencionada nesse mundo. Por esse motivo, é importante que estejam em seus quartos, caso contrário, irão se perder aqui dentro, sem achar a saída. As paredes são grossas, dificilmente nós iríamos ouvir seus clamores apavorados.

- Sem problemas. Respondeu Urubu. Nada de apavorados.

- É possível que ouçam barulhos estranhos, vindos do porão. É completamente natural. Tenho uma criação de aves exóticas, papagaios, araras, corvos, elas às vezes emitem sons que parecem gemidos humanos. Insisto que não se preocupem, é apenas um hábito delas. Peço que não desçam ao pavimento inferior, a iluminação é escassa, vocês podem se machucar.

- Ok, Dom. Sem porão! Replicou Urubu olhando feio para o King.

Bastou que Urubu mostrasse que tinha entendido as regras e o sujeito nos deixou aos cuidados da Helga para sumir escadaria acima. 

Funerária do RockOnde histórias criam vida. Descubra agora