22 - Voadora com os dois pés

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Eu sempre achei que iria morrer velhinho falando um monte de groselha para os mais novos. Que meus netos iriam evitar me fazer visitas porque eu era mais chato do que o Flávio Cavalcante. Eu já era um saco com dezenove anos, imagine com oitenta. Mas nunca me passou pela cabeça morrer nas mãos de um velho da reserva metido a Freddy Krueger. Mesmo quando aquela ferramenta monstruosa chegou perto da gente, eu continuava em um ataque histérico de riso. Talvez isso salvou nossas vidas, pois, bem no momento derradeiro, porque o torturador estava pronto para inferir um corte no rosto do King, bateram fortemente na porta. O velho, imagino que preferisse nesse momento de plateia, resolveu de bom grado convidar o visitante a assistir a sessão. Bastou abrir a porta e levou um soco esplêndido no maxilar que o fez girar duas vezes no meio da câmara. O dono do soco era o Caetano, que subiu no velho caído e terminou de arrancar todos seus dentes. Eu nunca imaginei que aqueles folgados do Rio de Janeiro iriam nos ajudar, mas a forma que observei o olhar dele pro King, e o olhar do King de volta, entendi. Tem coisas na vida que são inexplicáveis. Aquela noite tinha sido especial não só para mim. Caetano voltou pelo King, salvou nossas vidas. Eu nunca havia visto um olhar tão profundo e tão verdadeiro entre duas pessoas. Esse episódio de minha vida foi muito importante, traçou meu caráter e evitou que eu me continuasse posteriormente a ser um babaca. Deixamos o velho desdentado amarrado e fechamos a porta. Agora era a hora de soltar o Urubu. No caminho estavam os dois velhos parados no corredor. Paramos e eu fiquei olhando pro King e pros velhos. - Duvido acertar uma voadora com dois pés. Desafiei. - Sua coleção das revistas Mad?- Cê tá louco? Nem fudendo! Tá bom vai. Mas tem que ser no peito e não pode cair no chão.King tinha feito caratê e judô, como eu havia dito. O Aurélio Miguel tinha sido ganhado a medalha naquele ano em Seul e a gente passava as tardes assistindo Braddock e o Comando Delta tentando imitar o Chuck Norris. Tínhamos até uma almofada amarrada no quintal onde a gente treinava à certa altura. Era o nosso barato, entre mim e o King, fingir que éramos ninjas.Meu amigo nunca tinha acertado a voadora com os dois pés sem se esborrachar no chão. Eu tava com minha coleção de Mad em segurança. Mas ele estava tão nervoso com a questão da Nicole estar em perigo, que mandou um running dropkick perfeito! Que é aquele que você pega uma distância legal pra ficar bonita a voadora. Finalizou como uma ginasta, com os dois pés juntinhos no chão. Até o Caê aplaudiu. O outro velho eu mesmo derrubei com uma rasteira que levou os dois pés dele pro alto. - Meus amigos estão lá fora com o carro do diabo de vocês ligado. Eles viram o rabecão vacilando na frente da delegacia e roubaram pra zoar vocês. Iam deixar no farol, mas aí cheguei contando a história. Vocês precisam se benzer e benzer aquele carro também. Ele toca umas músicas muito esquisitas e tem hora que ele toca de trás pra frente!- Olha lá, King. Eles ficaram com medo do caronte! - He, he... Continuou o King. Se eles soubessem de toda a história daquele carro, voltariam a pé pra cidade. - Um dos meus amigos foi com o monza pra Coração Verde, lá tem polícia federal. Dá pra denunciar com segurança, o tio dele é delegado lá. Daqui a pouco chegam aqui. Eles já apagaram o baixinho folgado do cavanhaque. Está dormindo que nem um bebê. Disse o Caê. - Boa! Vamos soltar o Urubu. Está na hora da pá de coveiro cantar de novo na cara de alguém. King disse correndo pelo corredor. Urubu estava em choque em meio aos gatos. Não nos reconheceu quando entramos para pegá-lo. Parecia fora da realidade. Tentei contar sobre a fuga, mas ele não entendeu. Comentei sobre o seu Adalberto e ele sequer me olhou. Somente quando falei da Nicole, ele despertou. - Então o vampirão vai mexer na Nicole? Deixa ele comigo! Disse Urubu correndo para o caronte, estacionado na frente do castelo. Voltamos para soltar o pai da Nicole, que nos ajudou também a soltar o Karuma. Mas não achávamos a sala onde estava a nossa amiga.- Ela só pode estar lá na torre! Gritou Urubu com a pá na mão enquanto subia as escadas de pedra. - Tem que correr! Ele vai matar ela! Gritou seu Adalberto subindo atrás. Helga e o homem da bota de vaquinha apareceram, pulando sobre o pai da Nicole e o Caetano, a briga seria feia, mas não tínhamos tempo: - Corram lá, a gente da um jeito aqui, gritaram os dois. Seguimos então, Karuma, Urubu, King e eu até o quarto máster da torre. A porta estava trancada. Com a pá, não conseguiríamos abri-la. - Vamos tentar os três de uma vez. Gritei. - Vão se foder, seus traíras. Você não serve pra nada. Devolveu o Urubu ainda zangado com a gente. - Cala a boca, Urubu! É a Nicole que está aí, precisando da gente! Gritei forçando a porta. Urubu por um instante olhou dentro dos meus olhos. Ele sabia que eu tinha razão. Virou para o Karuma, suplicando que derrubássemos a porta. Éramos uma família. A gente sempre se amou. Levaríamos esse amor de amigos para resto da vida. Estaríamos juntos nos piores e melhores momentos, pelo menos era nisso que acreditávamos. Cada filho que nascesse. Quando nossos pais e pessoas que a gente amava infelizmente falecesse, quando a situação ficasse difícil e a grana encurtasse. Em todas essas ocasiões, apesar da vida adulta, das dificuldades, sempre estaríamos juntos. Mas naquele momento, era vida ou morte! E foi nessa circunstância que nós quatro finalmente derrubamos a porta de meia tonelada de madeira maciça. Nicole estava com roupas íntimas, amarrada à cama, com um hematoma no rosto, possivelmente de um soco do vampirão. - Ah, mas eu vou te matar! Gritou urubu, grudando no homem gigante. Vladimir era forte como um touro. Provavelmente derrubaria nós quatro, mas Urubu foi pro mano a mano com ele. Apesar de estarmos em uma situação completamente delicada, foi engraçado ver aquele enorme cabelo moicano balançando de um lado pro outro, socando aquele ser odioso. Suas mãos enormes seguravam o pescoço do Urubu, deixando-o quase roxo. Não fosse a voadora do King para ajudar, talvez o Vladimir mataria o Gabriel ali mesmo.- Tá ficando bom nesse esquema das voadoras, hein Ralf? Bastou largar o pescoço do meu amigo, ele rapidamente pegou a pá do Caronte no chão e se preparou para o gran finale. Vladimir jogou King ao chão e veio vigorosamente na direção do Urubu, que o acertou de forma certeira a face, fazendo-o pular para trás e cair no canto de seu quarto suntuoso. Consegui soltar a Nicole e entreguei suas roupas. - Karuma, gritei, desce a bicuda nele! Meu amigo já preparava um bom chute, quando o vampirão levantou sacando uma arma da cintura, Urubu ainda tentou ser mais rápido, mas levou um tiro no peito, caindo atrás da cama. - Não acharam que eu estaria de mãos limpas aqui esperando vocês? Disse Vladimir. Sentem todos ali, rápido! O desespero invadiu a todos. Tínhamos que levar o Urubu para um hospital, e rápido. O homem sorria, enquanto a gente observava nosso amigo caído, sem poder socorrê-lo. Era o jeito. Que merda! A gente na torre mais ferrada, com um cara ridículo, mas perigoso pra caralho. E agora ele iria matar todos. Realmente poderíamos ter morrido não fosse o pai da Nicole entrar no quarto de forma abrupta, agarrando o homem e jogando-o ao chão. Vocês nunca poderão imaginar as profundas expressões que a Nicole emitiu naquele momento, ao ver seu antigo herói, seu companheiro, aquele que destruía todas as barreiras entre o real e o mágico, ali, de volta, no alto daquela torre em Encruzilhada das Almas, para salvá-la. Amigos, vocês conhecem a Nicole. Nunca foi mulher de ser salva. Mas naquele momento, ali estava a menina. A criança Nicole. Vendo o pai dela depois de dez anos, brigando por sua menininha. Todos nós ficamos paralisados. Mas não por muito tempo. A própria Nicole avançou sobre o monstro humano que segurava firmemente seu pai. Enquanto isso, pude presenciar extasiado, meu amigo, Urubu, levantando com dificuldades e tirando do bolso de seu colete o chifre de bode, com a bala encravada nele. O homem conseguiu se desvencilhar dos dois, levantando-se e correndo em direção ao Urubu, que estava pronto para rebatê-lo novamente com a pá, mas não foi isso que aconteceu. Vladimir conseguiu o segurar pela cintura, projetando seu corpo para frente, e os dois voaram pela janela daquela enorme torre rumo à morte certa. Nicole emitiu um grito de dor sobre-humano, caiu no chão em um choro incontrolável, inconsolável, e foi acolhida imediatamente por seu pai, que a abraçou tentando confortá-la. King, Karuma e eu estávamos destruídos, com um profundo medo de olhar lá pra baixo e ver nosso amigo roqueiro morto nas pedras.

Era preciso ver! Fazer algo pelo Urubu. Nesse instante chegou Caetano. Viu o King em lágrimas, destroçado pela morte do nosso amigo, e não conseguiu tecer nenhuma ação, a não ser abraçá-lo da maneira mais humana possível.

Urubu era meu melhor amigo desde sempre. A pessoa que mais sabia sobre mim. Que esteve presente em todos os momentos importantes. Eu conversava mais com o Karuma, treinava caratê com o King, falava de meninas com a Nicole, mas com ele aprendi a jogar bola, a andar de bicicleta, a pular de pogobol, a tocar violão, andar de skate. Gabriel não era só um amigo. Era meu irmão escolhido. Passamos todos os anos novos juntos desde os sete anos. Não seria fácil a vida sem o Urubu.

Mas nada daquilo consegui pensar naqueles segundos. Apenas cheguei até a janela e tive a maior surpresa de minha vida. Lá em baixo, no chão, com seu corpo destruído, morto, estava Vladimir. E apenas o Vladimir. Esmagado por seu próprio peso na beira do lodoso lago. Mas não havia sinal do Urubu. Fiquei perplexo por alguns momentos, como quem tenta resolver um problema difícil de matemática, que logo foi solucionado, quando, do meio do verdume fétido do lago, emergiu nosso amigo, o lendário Urubu. Aquele que iria contar para todos por muitos anos que sobreviveu a uma queda de sete andares da torre de um castelo logo após levar um tiro no peito e ainda com uma bala soft na boca!

Descemos correndo, enquanto nosso amigo lutava para sair do pestilento lodo. Quem chegou primeiro foi a Nicole, que pulou em seu pescoço, abraçando-o e enchendo sua face de beijos.

- Sempre foi você, seu idiota! Sempre foi você, seu creep! Ela o abraçava dizendo.

- Eu achei que você me odiasse. Respondeu o Urubu pendendo pro lado.

- Mas eu te odeio! Te odeio, seu idiota. Dizia Nicole segurando a face do Urubu e beijando seus lábios, ainda se certificando de que não era um sonho e que ele estava mesmo vivo.

Urubu queria dizer muitas coisas a ela. Que estavam guardadas desde os doze anos. Mas não conseguiu. Ele tinha o jeito dele. Ela sabia disso. Os dois eram Bonnie e Clyde. E ela sabia que era amada pelo coveiro das trevas.

Esperamos mais alguns instantes até que chegou a polícia, toda ela. Mas percebemos que tinha coisa errada. Eram os corruptos do Vladimir. Todos dispostos a prender todo mundo pela morte do proprietário do castelo. Estavam prestes a soltar os cúmplices, quando uma horda com mais de trinta viaturas cercou todos. Dessa vez era o Flávio, com seu tio delegado e toda a polícia federal da região, tinha até helicóptero.

O dia estava amanhecendo e a operação durou toda a manhã. No escritório do Vladimir foram encontrados todos os cadernos com nomes dos policiais corruptos, dos clientes torturadores, dos fornecedores e demais envolvidos. Foi preciso um caminhão cedido pelo exercito para levar todos os cúmplices. A gente, bem... nós éramos uma equipe. Os anos iriam passar e nossa amizade nunca seria esquecida, mas naquele momento, éramos felizes de estarmos todos juntos.

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