Ciel continuava boquiaberto com a cena. Ela era, no mínimo, perturbadora. Olhou o homem ruivo ao seu lado e imaginou trinta possíveis passados assombrosos para ele. Ao mesmo tempo, nenhum parecia encaixar.
"O quê..."
"Está na hora de sairmos um pouco. Vamos prosseguir com a história."
Em um estalar de dedos, todo o campo de visão do grupo foi substituído por uma imensidão negra, ainda que, em outro estalo, surgissem milhares de pequenos pontos luminosos; uma provável imitação das estrelas. Era lindo... Uma beleza impressionante.
"Estamos de volta ao vazio agora. Aqui é o centro das minhas memórias, o lugar onde consigo acessar cada uma delas." Milhares de sussurros ecoavam pelo infinito, quase como se todas as lembranças quisessem se comunicar de forma meramente audível. Ciel não conseguia decifrar se elas estavam apenas em sua mente ou se os outros também podiam ouvir. "A cada 2000 anos, uma alma está destinada a sofrer tanto em sua vida mundana que o próprio diabo renuncia seu corpo, usando seu espírito para possuir o herdeiro e dar-lhe poderes inimagináveis.
"Essa benção é herdada por meio de uma marca. Foi passada a mim no exato instante da cena que presenciamos há minutos." Ergueu um pouco a blusa curta de couro que usava, revelando um símbolo sobre o local ao qual seu coração estaria posicionado, e a abaixou logo em seguida. Um pentagrama rodeado por fogo. "Para isso, o corpo humano do escolhido não pode mais estar com vida. Foi por esse motivo que Azriel me matou."
"Azriel?", interrogou Alois, confuso.
"O garotinho que viram, ou ao menos era um na hora. Não se deixem enganar pela aparência inocente, ele foi um dos mais fortes reis que já passaram por aqui."
"Azriel é o rei demônio que matou um terço dos anjos há quase três mil anos, não?", observou Ciel, quase em um tom de confirmação, fazendo com que Lúcifer, ou Lyan, talvez, o encarasse em um misto de curiosidade e hesitação.
"Sim, criança. É sim. Como sabe? Os nomes dos portadores não são citados em livros comuns de história." Lyan se aproximou do rapaz, sem quebrar o contato visual. Ciel ainda se assustava com a altura do homem, assim como com os chifres que lhe saíam pelos longos cabelos. A beleza daquela criatura era assustadoramente magnífica.
"Eu não sei... de onde ouvi isso", negou confuso, balançando a cabeça levemente. Ele realmente não fazia ideia, sentia que aquela informação só devesse estar ali.
Lúcifer o fitou por mais alguns instantes — que mais pareceram horas — como se lesse o mais profundo de sua alma. Observando daquela forma, pôde perceber que as orbes do rei mudavam constantemente de cor, ainda que de forma lenta. No momento, um dos olhos estava em um verde musgo, e o outro em um tom claro e límpido de azul.
"Uma pena; gostaria que se lembrasse, pequeno. Se a memória lhe vier, me avise. Precisaremos conversar." E se virou de costas, voltando à frente dos demais. "Não vamos visitar nenhuma outra lembrança sobre minha infância, infelizmente existem cenas perturbadoras demais para serem presenciadas." Um meio sorriso brincava no rosto, como se o pensamento de uma criação sofrida não lhe doesse em compensação ao agora, e provável que não mesmo. "Ao terminar o ritual, Azriel me levou até Asalom, mais precisamente ao castelo. Para me reviver em minha nova vida, soprou sobre mim a mais pura essência de fogo infernal. Treinou-me para ser um rei, um tirano, um guerreiro e um pecado, tudo ao mesmo tempo. Ao preencher meu corpo com a alma de Lúcifer, tornei-me o soberano do submundo.
"Sabem o que é engraçado?", prosseguiu ele. "Todo esse poder trouxe algo que nunca desejei. A culpa. Malditos humanos e seus pecados, porque não tomam para si o peso do erro. Sempre que pecam, são tentados por mim, dizem. Eu quem os fez agir de tal forma. Sou odiado por noventa e nove por cento da humanidade que crê em minha existência, sobrando esse um por cento com os estúpidos que pensam me agradar com seus rituais malígnos. Tudo que fiz em minhas outras existências foi criar os pecados. Que culpa há sobre mim quanto a quem os comete? "A expressão raivosa de Lúcifer aos poucos foi sendo substituída por uma melancolia. Os presentes não podiam deixar de observar o quão "poético" se tornava Lyan quando cercado por sua própria tristeza. Não demonstrava as brincadeirinhas ou o senso de humor costumeiro, e mesmo All-Thess e Dalrie, que já haviam escutado aquelas histórias tantas vezes, moldavam uma maior seriedade perante a cena.
"Luci", chamou Alois, recebendo a atenção de todos sobre si, inclusive o olhar gentil do ruivo. "Ainda não contou sobre a maldição."
"Ah... A maldição." O sorriso morreu lentamente, até que apenas um resquício dele sobrasse no semblante de Lyan. "Demônios têm tantos sentimentos quanto humanos, pequeno Alois, você já percebeu. Contudo existem algumas exceções... quanto ao que ocorre quando eles surgem. Vocês" sinalizou o grupinho de quatro jovens que o olhava "são livres, de certa forma, para se apaixonarem, mesmo que essa união matrimonial seja forçada. Já eu... Bem, eu estou destinado a amar ao menos uma pessoa em todo o meu reinado, e ela a morrer. Amei duas vezes nestes 500 e poucos anos de vida: um anjo, cujo eu mesmo acabei por matar, e uma humana. Uma humana doente e debilitada que se foi jovem demais." As palavras pareciam lhe pesar ao extremo, e os olhos, anteriormente brilhosos, se mostravam gélidos.
"Acho que... devemos parar por aqui, certo?", All-Thess comentou. Ele amava aquela história, mas sempre se sentia mal com ela.
"Sim, devemos." Dalrie foi até o pai e o abraçou pela cintura, recebendo carícias nos cabelos e um beijo na testa em seguida. Lúcifer voltou a sorrir, deixando o clima mais leve.
"Mas isso não importa muito, afinal. Não preciso me apaixonar, tenho uma família lindíssima bem aqui." O que não deixava de ser verdade, ainda que seu filho e o esposo já não morassem mais com ele, logo, Lyan passava seus dias isolado no grande castelo em que vivia.
Lúcifer concentrou-se durante alguns instantes e, mais uma vez, eles apareceram na cama. O resto da noite amenizou a aura pesada que se formou. Ficaram até 03:00 da madrugada contando histórias e se divertindo como velhos amigos. Beberam mais um pouco, não ao ponto de ficarem bêbados, e o único aparentemente não muito feliz era Claude, que até então não pronunciara uma palavra sequer.
"Teddy, está tudo bem?" Era All-Thess, que aproximou-se discretamente do irmão e se sentou ao seu lado no estofado, vendo-o observar todos se divertindo na cama, em uma guerrinha de travesseiro.
"Claro. Está sim." Saiu de seus devaneios para encarar Changin, tentando esconder os sentimentos que o reodeavam, mas seus olhos entregavam tudo.
"Não, Teddy. Não está. É por causa do Loulou?"
"Não", demorou-se nas palavras e suspirou fundo, não sabia se queria estar tendo aquela conversa.
"Pode me contar, querido. Está gostando do garoto?" perguntou com um quê de implicância, recebendo um leve empurrão em troca. Riu da expressão desgostosa de Claude.
"Só... Ele me lembra uma pessoa." Fitou Alois rindo ao levar uma travesseirada e perdeu-se na imagem por alguns segundos.
"Aquela garotinha que você costumava sair escondido para ver há tantos anos?" Claude ficou surpreso pelo irmão ter se lembrado dela, ou melhor, por ele saber de sua existência. "Acertei. Você desenhava ela com frequência quando era criança, depois jogava tudo fora. Eu guardava eles em uma caixa, porque eram lindos. Só fui descobrir o que tinha acontecido muito tempo depois." Um silêncio se instaurou entre os dois, até que All-Thess questionou: "Como acha que ela está agora?"
Claude se pegou exposto por pensar em quantas vezes já tinha imaginado aquilo.
"Acho que... mais ou menos do tamanho do Alois, com o cabelo loiro na altura do ombro e olhos azuis gentis. Irritante como sempre, mesmo sem a voz."
"Ainda a ama?"
Ele tinha refletido sobre aquele assunto muitas vezes antes também, e respondeu a única coisa que o bloqueio em seu coração permitia: "Amar é uma palavra muito forte, não acha?"
"É. Muito." Levantou-se do sofá e, antes de voltar para a brincadeira, olhou novamente para Claude. "Agora levanta daí, corno, vem brincar com a gente." O rapaz não teve tempo de responder, logo foi atingido por um travesseiro. Alois o olhava com a expressão brincalhona de sempreao segurar outra almofada, como quem dizia "se não vier aqui, vai levar outra".
Ele sabia o quanto Alois era um filho da puta, por isso, pegou o objeto atirado em si, colocou os óculos cuidadosamente sobre a cômoda, longe da área de aniquilação, e encarou Alois mortalmente, jogando o travesseiro com tanta força e velocidade que o garoto quase não desviou. Mal sabia ele que aquela era apenas a distração.
Alois estava muito ferrado.
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Se prometer, não case com o Diabo
FanfictionCiel e Alois são irmãos que, para evitar uma guerra entre espécies, aceitam se casar com os príncipes do reino infernal. Mas, mais do que intrigas matrimoniais, precisão lidar com os segredos escondidos à sete chaves e com relacionamentos familiares...