Os prisioneiros podem jogar xadrez

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Joguei xadrez com a morte e

perdi. Tentei gambitar o

peão e sair com o

bispo em fianchetto. Tive que

voltar a dama. Perda de

tempo.


Dama ou rainha? Jogadores de

praça, antigos. Prefiro-os. Não

gosto das tais aberturas

modernas. O centro do

tabuleiro deve ser controlado

logo. Peões. Peões no centro,

por favor e, por favor,

mantenha os bispos longe das

crianças.


Não tive um jogo ruim tal

qual Bergman. Foi

razoável. Aprendi lances

excelentes, mas não

tive tempo de

aplica-los. Lá estava eu,

dançando após o

jogo. Tristemente

acorrentado. O melhor dos

tangos argentinos soava

em meus ouvidos, enquanto o

único sobretudo que usei em

toda a minha vida,

esquentava-me em

toda a minha morte.


Talvez fosse o amarelado das

peças antigas que

enfrentei. Talvez fosse o

negro, lembrando-me

navios, que usei. Sempre em

desvantagem, desde o primeiro

lance. Sempre preso à

revidar. Quando pude

criar, quando me sobrou

luz de iniciativa, recuei. Nunca

soube jogar com vantagem.


Não sou Fausto e

nem pretendi sê-lo. Tampouco sou

Eliot, fingindo ser Prufrock,

fingindo ser Hamlet. Não sou

nada. Nem Pessoa

fingindo ser Álvaro de Campos.


Escutei os cavalos pedindo-me,

implorando-me para avançar e

não tive coragem. Abandonei o

jogo com o mate iminente. Abandonei a

vida com um aperto em mãos frias.


Porque não fui enganado.


Porque sempre aqui esteve e sempre te vi.


Porque ao meu lado caminhou e contigo contei pegadas.


Porque comigo passou frio.


Porque comigo passou calor.


Porque já não posso

apressar os passos frente ao

que já chegou. Eis-me

aqui. Se andar mais,

passarei. Aqui fico,

estagnado,

resignado. Aqui fico e

nunca mais daqui sairei.

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⏰ Last updated: Jun 10, 2020 ⏰

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Natureza ImpostaWhere stories live. Discover now