Avareza

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Allegory of Avarice (Alegoria da Avareza) Jacopo Ligozzi , 1590

Avizinho: Voltamos para a visão da Jiwoo

Kim Jiwoo

Você já dormiu por tanto ao ponto de acordar e não ter ideia de onde está? Não era algo que eu fazia com frequência, mas geralmente quando eu pegava no sono estudando geralmente era assim. Acordei completamente perdida, no meio de um escritório que eu não me lembrava de quem era. Pra começo de conversa eu nem lembrava como tinha chegado ali. As paredes eram vermelhas, atrás do sofá que eu estava sentada (que por sinal também era vermelho) havia uma prateleira cheia de livros, então eu logo deduzi que eu devia ter pegado no sono enquanto lia ou escrevia alguma coisa. Definitivamente não seria a primeira vez. Teve uma vez eu até babei em cima de um exemplar de A Vegetariana da Han Kang. Não me entenda mal, o livro é maravilhoso, ele conta a história de uma mulher coreana que para de comer carne e de agir como uma esposa e filha submissa, falando sobre sexismo dentro da sociedade, mas Yeji – uma ex-namorada – tinha me obrigado a ler, pois pra ela eu não valorizava a literatura coreana. O meu problema com a obra mesmo foi que eu nunca gostei de fazer nada obrigada.

E assim como a Yeonghye, personagem do livro, eu também tive um sonho. Não foi sangrento, mas igualmente doido. Começava comigo descobrindo que estava morta que tinha ido parar entre o purgatório e o inferno. Me sentei no sofá e coloquei a mão na cabeça, massageando minhas têmporas, tentando me lembrar dos detalhes. Bom, havia demônios, anjos caídos, e... Eva. Ah, eu podia lembrar claramente das feições angelicais e como meu corpo reagia a ela de uma forma estranha. Era tão linda que desejaria que fosse real. E lésbica, preferencialmente, não tenho mais idade pra ter crush em hetero. Quando estou acordada de fato e finalmente me sinto eu mesma, olho pra frente e vejo uma mesa cheia de livros e atrás da escrivainha, uma mulher. Não qualquer mulher, mas Yves. Eu ainda to sonhando?

Nope, ela é real, eu devia saber que nunca ia conseguir imaginar alguém como ela. Me levanto e me aproximo da mesa, ela parece interessada demais em sua leitura pra notar minha aproximação. Antes de chegar muito perto lembro que estava dormindo recentemente, então me preocupo com meu hálito. Coloquei a mão na frente do meu rosto e soltei o ar, até eu lembrar que eu estava morta e até o momento meu corpo não tinha nenhum cheiro desagradável.

Então chego ao seu lado, passo meus olhos pelos títulos na mesa, pra ver se eu conhecia algum. Livro de Vedas, Tripitake, Tao te ching, Taishang Ganying Pian, Shinten e outros que eu não conseguia entender por estarem em mandarim antigo, ou algo em sânscrito. Já tinha ouvido alguns daqueles nomes da religiosidade asiática, mas minha família era cristã, então não tinha tanta familiaridade, mas lembrava de taoísmo, xintoísmo e budismo. Yves estava tão empenhada em suas anotações que deu um pulo quando eu li em voz alta o que ela escrevia.

-Mitos chineses. – Depois que eu falei, ela tentou esconder o que escrevia, parecendo pega em flagrante.

-Eu não vi você acordando. – Disse tentando normalizar a respiração e eu segurei o riso, achando engraçado ter assustado a pecadora original. Essa seria uma primeira vez.

-Eu vi que você parecia bem interessada nesse livro. – Agora eu estava do seu lado, olhando todas as leituras e tentando entender. Ela não parecia muito confortável comigo ali, outras pessoas talvez tentariam a dar privacidade, mas eu era curiosa e queria saber o que ela parecia querer esconder de mim, e os motivos. – Meu mito chinês favorito é o do fio vermelho. Eu sempre achei tão romântico, destino e essas coisas.

-Você acredita em alma-gêmea? – Yves me perguntou, finalmente me encarando e aquele olhar por algum motivo penetrou meu amago. Por um breve momento eu pensei que ela estava sugerindo algo romântico entre nós duas. Levantei as duas sobrancelhas, surpresa. Doideira né? – Quero dizer, se você amou alguma das suas namoradas de verdade e achou que fosse durar para sempre. – Parei um pouco para pensar na sua pergunta, tentando me acalmar pelo falso alarme de antes ainda.

Fallen (Chuuves)Onde histórias criam vida. Descubra agora