Ira e rancor

463 79 79
                                    


The Anger of Achilles, Jacques-Louis David, 1819

-Uau, esse lugar é... o que é esse lugar? – Eu tinha seguido Yves por uma pequena escada de bombeiro que ficava no meio do lobby do andar que estávamos. No topo dessa escada tinha um pequeno cômodo, onde estávamos agora e bem, nele não tinha nada. Literalmente nada, e eu não entendia o motivo dela estar tão empolgada.

-Ainda não chegamos. – Ela riu de mim. – Vem, eu vou te mostrar. – Institivamente ela agarrou minha mão, e meu coração quase parou. Tive que lembrar a mim que ela o fez só por reflexo e que aquilo não significava nada pra ela. Deixei meu corpo ser puxado enquanto não conseguia parar de olhar pra sua mão em volta da minha. Ela abriu uma porta no final do corredor e então eu pude ver... era como um bar que ficava no topo de um arranha céu, pois estava tão escuro lá fora, com muitas estrelas, parecia veludo com milhares de diamantes. Era uma vista de tirar o folego. Mas quando parei de admirar o universo e olhei para a criatura em minha frente, a expressão dela ao me olhar era ainda mais bonita do que todas as estrelas e nebulosas do espaço. – Você gostou?

-É a coisa mais linda que eu já vi. – E naquele momento eu não sabia bem do que estava falando. Ela ainda não havia soltado a minha mão, e aquilo estava começando a ficar esquisito, então dei um jeito de deslizar meus dedos, logo sentindo falta do seu calor. Cocei a garganta. – Quer dizer, isso aqui parece como eu imaginei o Restaurante no Fim do Universo. – Me foquei no espaço, me aproximando da sacada, olhei pra baixo e dava pra a Terra, não redonda, mas elipse, me lembro do meu professor de geografia do ensino médio dizendo que a terra não tinha o formato de uma bola exatamente, fico feliz em poder conferir.

- Aqui é onde alguns demônios e anjos se encontram. – Yves falou atrás de mim. – Você não vai poder pedir nada no bar, porque só vendem coisas como virtudes, bondade, espiritualidade e não é humanamente possível ingerir. Mas a gente pode escolher uma mesa...– Me virei para a olhar e ela continuou, parecendo agora um pouco sem jeito. – sentar um pouco, se você quiser fazer aquela coisa de humano, onde você fala sobre o que está pensando, você pode também.

-Você quer dizer, conversar?

-Isso! Se você quiser, podemos, eu não tenho muita experiencia, mas claro. – Agora eu tinha certeza que ela estava sem jeito. Mas devia ser por não estar habituada a conversar com humanos, eu não devia deixar minha fértil imaginação pensar que houvesse outro motivo.

-Eu adoraria. – Sorri pra ela.

...

-Então, eu vi que você estava escrevendo um livro, antes de morrer. – Até esse momento meu encontro com Yves estava bem esquisito, sem sabermos o que falar, mas depois dessa pergunta, todos já devem ter imaginado que eu não calaria mais a boca. Espera, eu falei encontro?

-Isso, sobre o livro Orlando, da Virginia Woolf. – Comecei para me distrair do fato de que acabei de pensar que estava em um encontro com Eva. – Eu ia falar sobre como esse livro retrata a bissexualidade da autora, e é bem interessante quando Orlando percebe que, ao se tornar mulher, sua vida muda e as coisas que antes ele podia fazer agora são problemas só pelo fato dela ser mulher agora.

-É interessante como a humanidade complicou conceitos de gêneros. Demônios nem anjos tem sexo, e podem variar entre gênero, por exemplo, Olivia. Acho que isso é perto do que vocês chamam de não-binário hoje em dia. – Ela disse enquanto tomava um gole do que havia pedido, eu acho que era prudência com um toque de temperança. O mais engraçado é que tinha um cheiro que me lembrava maçã, típico.

-Eu vou ser sincera, não entendo muito sobre essas coisas, só tentava ser respeitosa com todos que se sentiam diferentes. Mas eu acho que é mais ou menos isso. – O bar estava bem ocupado, tinha bastante movimento, alguns olhavam pra nós parecendo surpresos. – Humanos não devem vir muito aqui, estou certa?

-Não mesmo. – Ela olhou para alguém estava nos observando e então o outro desviou. – Mas eu também não, eu geralmente ficava no último andar, vendo que entra no Éden.

-É tão interessante assim?

-Eu ficava esperando a Lilith subir. – Deixou escapar e aquilo só aguçou minha curiosidade.

-Ela está no purgatório? – Acabei tendo que perguntar. Só aí ela pareceu perceber o que havia dito, então respirou fundo, tomou mais um gole da bebida e continuou:

– Depois de nós duas nos apaixonarmos, quebrar as regras e ficarmos juntas, o que você deve conhecer como o pecado original, Olivia, que era próxima a nós duas, nos apoiou. Ela já não concordava com nosso Pai há muito tempo, então ela começou uma rebelião. Você já sabe, nada disso deu certo. Aconteceram... coisas – ela parecia hesitante – Eu e Lilith abandonamos Olivia em uma hora importante, queríamos fazer um acordo com Deus. Foi egoísta e eu me arrependo, ainda mais porque... – aquilo parecia difícil de falar – depois daquilo Lilith me abandonou. Ela fez um acordo com Deus sozinha, pediu para ser uma humana normal e foi pra Terra. – Ela respirou fundo. – Então eu esperei todo esse tempo, como uma idiota, ela voltar, imaginei que ela ia direto pro Éden, por causa do acordo com Deus, mas ela nunca apareceu. – Ela olhava pra baixo, parecendo triste, de coração partido.

-E como você sabe que ela não foi parar no Inferno, ou que não está por aí purgatório? – Ela me olhou, tomou mais gole grande de sua bebida.

-Boa pergunta, na verdade. – Foi só o que disse e isso não era uma grande resposta.

-E por que você parou de esperar ela?

-Porque uma humana com doutorado em literatura inglesa não me deixava em paz. – Deu um sorriso pequeno, tentando não ficar mais triste.

-Desculpe por isso. – Eu realmente me senti mal. Ela parecia amar Lilith de verdade, não era só porque eu nunca tive uma paixão verdadeira que e eu não respeitasse a dos outros.

-Tudo bem, na verdade é uma boa coisa, sair um pouco de lá, mudar os ares. Além de que, se ela estiver no inferno, Olivia nunca vai deixá-la sair. Minha irmã tem muito rancor por nós duas. E pra ser sincera, já passou muito tempo, se ela ainda não apareceu, provavelmente nunca vai. E eu tenho que começar a aceitar isso. – Virou o copo terminando de tomar o líquido.

-Eu nunca vivi nada parecido com esse sentimento que você tem, as vezes eu desejo ter vivido. – Acabei pensando em voz alta.

-Não deseja não, pode acreditar. – Falou quando terminou, batendo o copo na mesa, parecendo ainda mais triste. – Vamos continuar?

Ao olhar o quanto ela parecia acabada, apenas acenei. Talvez eu não desejasse amar alguém tanto Eva amou Lilith, pois a sombra que ela carregava devido aos sentimentos, não parecia fácil de sobreviver a carregando. Talvez fosse melhor mesmo nunca ter dado pra ninguém o poder de me quebrar daquele jeito.

...

-Yves, uma pergunta rápida. – Disse enquanto já estava dentro da última sala desse andar. "Ira e Rancor" era o nome. Nesse cenário eu tinha que ver como a vida de Jung San seguia plena após ele roubar uma ideia minha sobre um artigo envolvendo Razão e Sensibilidade da Jane Austen. Lembrando do que havia acontecido com minha mãe, aparentemente o erro dos outros seguia pesando pra mim depois.

- Sim? – Ela questionou na minha cabeça.

- Roubar a ideia dos outros é pecado?

- Sim, juntamente com mansplaining, que ele também fez com você. Esse aí vai direto pros braços da minha irmã la em baixo.

-Ótimo. – De repente minha alma estava muito mais leve e eu pude dar as costas pra ele. Não deixaria uma alma tão pequena como daquele machista nojento fazer mal pra mim.

-Essa foi rápida. – Yves disse quando eu saí da sala. – Saber que ele está condenado eternamente ajudou a não guardar rancor.

-Mais do que você imagina. Principalmente depois de eu conhecer Olivia, você imagina alguém como aquele imbecil perto dela? Ela vai comer ele vivo! – Antes que pudéssemos rir escutamos alguém pigarrear atrás de nós. Eu e Yves nos viramos lentamente para dar de cara com uma nada feliz Olivia, de braços cruzados, nos encarando.

-Olivia? – A pecadora original perguntou. – O que você faz aqui?

-Eu vim protestar. – Disse com cara de poucos amigos. – Não concordo com a sentença de Kim Jiwoo, acredito que ela deva voltar comigo pro inferno.

Fallen (Chuuves)Onde histórias criam vida. Descubra agora