Está frio, muito frio, meu nariz escorre, enxugo com a manga da blusa, me esforçando para aquecer as mãos, meus dedos estão rígidos, sopro uma mão por vez, o sopro sai tão gélido quanto o ar frio da noite escura lá fora. Procuro manter o volante reto e o carro na direção certa, evitando a contramão ou o meio-fio, as ruas estão silenciosas e vazias, o céu está escuro sem lua ou estrelas, típico de uma noite de inverno.
Chego à avenida principal, a descida é extremamente íngreme e o carro atinge uma velocidade absurda, não me importo, estou dirigindo de modo automático. Minha mente vagueia por minha vida, e as lágrimas escorrem silenciosamente pelo meu rosto, minha cabeça lateja fortemente, aperto os olhos na tentativa de limpar a visão que fica turva e embaçada, respiro fundo e consulto o relógio de pulso.— Preciso chegar em casa, preciso chegar em casa, preciso...― Repito em pensamento como um mantra, já são meia-noite e meia eu deveria ter chegado há duas horas, estou muito encrencada. O visor do meu celular acende pela sexta vez em menos de dez minutos, o nome "Papai" aparece na tela com nossa foto estampada ao fundo.
Um segundo de distração e a próxima coisa que vejo é um clarão, meu pé se enterra no freio por instinto, o barulho é tão ensurdecedor que abafa meu grito, sinto um terrível puxão no ombro esquerdo e em meio ao caos escuto minha clavícula se partindo... dor, muita dor, meu corpo é arremessado para frente e para trás, de forma tão brutal que meu nariz se esmaga contra o volante, uma chuva de cacos de vidro atinge meu rosto, arranhando e cortando.
Tudo gira, o mundo gira ao meu redor, o carro rodopia uma, duas vezes, três, não consigo contar, de repente tudo fica escuro, silencioso e abafado como se o ar tivesse simplesmente desaparecido. Subitamente não sinto mais meu corpo, estou levitando, uma sensação de paz me atinge por inteira, me sinto leve, o frio se esvaí do meu corpo e estou completamente aquecida. Olho para a cena abaixo dos meus pés, e a realidade esmagadora me obriga a descer, enquanto meus pés descalços tocam o chão visualizo o horror a poucos centímetros.
Uma batida, dois carros se colidiram em um cruzamento, então que compreendo alguém havia avançado o sinal vermelho. O carro mais próximo estava destruído, capô amassado, faróis quebrados, o painel se resumia em estilhaços de vidros marejados de sangue, alguém tinha sido arremessado por ele com o impacto da batida. Mais adiante havia um corpo, um homem com um casaco grosso de lã marrom, deitado de bruços no chão com a face lateral do rosto pressionada contra o asfalto frio, a parte visível mostrava cortes lancinantes, a pele clara se contrastava com a cor carmesim do sangue que escorria por sua bochecha e supercílio, seus cabelos castanhos estavam cobertos por estilhaços pontiagudos e uma poça de sangue se formava ao redor de sua cabeça.
Caminho devagar ao encontro dele, ele precisa desesperadamente de ajuda. Uma mulher aparece, eu paro, mesmo com todo o caos suas feições são de completa serenidade, cabelos loiros em corte estilo chanel emolduram o seu rosto. Ela caminha lentamente em direção ao homem, olha para ele com afeto, se abaixa e afaga seus cabelos com carinho, ela também está descalça eu tento alertá-la quanto aos estilhaços de vidros que podem ferir seus pés, mas quando abro os lábios nenhum som é emitido, então um pavor cresce dentro de mim, eu quero ajudá-los, mas minhas pernas parecem congeladas, um questionamento temeroso me invade: Estou... morta?
Percorro a rua vazia com os olhos, observo o outro carro com a porta lateral amassada a alguns metros, uma mulher está ao volante, sozinha e desacordada, minhas pernas fraquejam e o chão some sob os meus pés, a mulher dentro daquele carro sou eu. Trêmula, tento assimilar o que está acontecendo, meu corpo desacordado tem a cabeça pendida contra a janela e sangue escorre do nariz... o ar começa a ficar preso em minha garganta.
Percebo que a mulher me observa atentamente, ela se levanta e olha em meus olhos com profunda tristeza, e como se respondesse aos meus pensamentos, murmura:
— Não, Liz, você não está morta. Você nos matou.
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Indelével Sob a Pele
RomanceDescrição: - LIZ. Aquele chamado íntimo com apelação. A voz firme me reivindicando, o chamado pelo qual eu andara procurando a vida toda. - LIZ. Me ergo, o rosto molhado de lágrimas e a camisola encharcada com o suor. O corpo sombreado dele está...