Capítulo 1 - Temporal

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Com ventos infernais de um dia chuvoso, árvores desprendiam as suas raízes do chão e sucumbiam ao asfalto, destruindo os telhados de algumas casas e carros que encontravam no caminho. O céu, este parecia estar prestes a desmoronar com raios e trovões a iluminarem a escuridão da noite acima de seus pequenos moradores, estes aflitos diante da sua magnitude em suas casas e embaixo dos seus cobertores. No meio de toda a tempestuosidade, surgia um pontinho roxo a cortar o ar pelos céus esbarrando nas árvores que ainda restavam de pé. Após bater sequencialmente em duas acácias e tomando um grande impulso de ar, enganchou-se no alto dos galhos de um enorme pinheiro antigo do bairro que se contrastava ao cenário que ia se urbanizando da pequena cidade de Monte Azul. De lá de cima, o chapéu, castigado pela chuva e balançando junto com os galhos, parecia observar as pessoas a correrem desesperadas pela rua movimentada em busca de um abrigo embaixo de pequenas árvores e marquises. De repente, outra forte corrente de ar faz o pequeno e charmoso chapéu sobrevoar cada vez mais alto na cidade. Mais uma árvore caía pelo caminho que ele passara quase o atingindo, causando engarrafamentos e palavrões de pessoas enfurecidas após um longo e estressante dia de trabalho.

Afastando-se das ruas movimentadas, tomou rumo a um pequeno e escuro bosque rodopiando no ar sem parar. Apenas dava para ver o prateado da água que desabava do céu a se contrastar com a magnífica lua que ali brilhava por um instante entre as nuvens carregadas. Após sobrevoar um pequeno lago e quicar em uma canoa que ali estava, logo o chapéu roxo repousou em um pedaço de madeira localizado sobre uma pedra com um voo sutil, acalmando-se junto com a chuva e o vento que também se acalmavam naquele momento. Próximo dali, uma enorme árvore desgastada pela ventania começou a vir ao chão. Com o seu tronco a golpear com tudo o pedaço de madeira em que o chapéu estava e fazendo dela uma catapulta, ele foi lançado por vários metros rumo ao galho de uma pequena árvore, onde passaria o restante da noite.

— Meu Deus, que estrondo foi esse? —  Perguntou Lúcia assustada com o barulho, colocando os pratos na mesa para o jantar e olhando pela janela.

— Acho que algo grande lá fora tombou, o mundo tá desabando, nunca vi uma tempestade tão forte assim na minha vida — respondeu Getúlio, alisando a sua barba grisalha a refletir.

— Verdade, que temporal. Guga! O jantar tá na mesa! — Exclamou Lúcia para o seu filho.

Gustavo estava no seu quarto a admirar fascinado cada gota de água a escorrer lentamente pelo vidro da sua janela. Admirava também a escuridão lá fora e as silhuetas das grandiosas árvores a se balançarem com o forte vento. Distraiu-se olhando todo o furor da tempestade até que a mesma acalma-se, como se estivesse assistindo a um programa de televisão. Amava desde que se entendia por gente admirar a natureza e as suas manifestações, das mais simples às mais poderosas.

— Guga! Cadê você? — Perguntou a sua mãe, já impaciente.

O menino dirigiu-se então até a porta do seu quarto e desceu as escadas se arrastando. Com um pouco de resistência, foi até a mesa para jantar com o seu novo padrasto. Não conseguia se dar bem com ele ainda. Também pudera, Getúlio não gostava muito da ideia de ser pai, já que nunca antes fora apesar da idade.

— E aí, meu querido a... é... hum... Ge... Geraldo, vamos fazer mais essa excelente refeição? - Falou Getúlio, tentando puxar conversa.

— É Gustavo... — sussurrou a sua esposa, envergonhada pela gafe do seu marido.

Dando um sorriso para o menino, ele percebeu que o mesmo se fechara em seu canto na mesa sem dizer uma só palavra. Mesmo sentado de frente ao seu padrasto, sentia menos desconforto ao encarar o prato vazio do que a face dele.

Tentando quebrar o silêncio constrangedor que ali se formara, Lúcia então resolveu puxar assunto:

— Viram o noticiário? O museu daqui pegou fogo. A repórter disse que uma árvore caiu por lá e causou um curto-circuito, dando início ao incêndio. De partir o coração! - Exclamou ela, arregalando os olhos para Guga.

— Realmente devem ter tido enormes perdas culturais para todos nós — falou Getúlio, ainda sem graça. — Não acha, Gustavo?

O garoto o olhou e nada disse. Frustrado, Getúlio resolveu se abster da conversa e seguir o jantar sem mencionar mais uma palavra sequer. Logo depois, Lúcia uniu-se aos dois, seguindo jantando em pleno silêncio.

Havia pouquíssimo tempo que Lúcia e Getúlio decidiram morar juntos. A união dos dois provocava em Guga uma sensação estranha e nada boa. Era filho único e de mãe solteira, não tinha chegado a conhecer o seu pai. Também nem gostaria. Certa vez havia ouvido escondido a sua mãe falar com a sua tia no telefone que ele fora um filho indesejado pelo pai e que o mesmo a abandonou por não aceitar a sua gravidez. 

Algum tempo se passou e após encherem as barrigas, cessando o silêncio, Gustavo se despediu da sua mãe com um beijo carinhoso em sua bochecha e foi dormir muito mais cedo do que nos outros dias. Subindo as escadas, logo entrou no quarto jogando-se na cama e se aconchegando em seu edredom, protegendo-se do frio que ainda insistia em penetrar os seus ossos e o fazia tremer. Amava o tempo gélido, mas com até mesmo as mãos a ficarem dormentes com tamanha frieza, acabou se inquietando, irritando-se. Querendo dormir o mais rápido possível para acordar bem cedo, após muito esforço, conseguiu adormecer. Tinha prova na escola no dia seguinte.


O chapéu de Antony CobrichOnde histórias criam vida. Descubra agora