Capítulo 6 - Revelações

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— Vocês... vocês estão mortos? Aqui é o céu? — Perguntou Gustavo, aflito, franzindo a testa.

Antony e Aron se entreolharam naquele momento. Tomando a frente, o conselheiro logo pigarreou para soltar a sua voz. Finalmente as dúvidas da cabeça do garoto seriam sanadas.

— Aqui não é céu nem inferno, meu caro amigo, mas sim, um mundo de transição e recuperação. Um mundo passageiro em que todos os que aqui habitam não sabem como se decorreu a sua morte — falou o conselheiro passando a mão pela sua barba e tomando um gole de café. — Esse chapéu em sua cabeça é de Antony, e isso, eu presumo, você já deve ter percebido, não é? — Perguntou, apontando para o fedora na cabeça do garoto.

O menino, ouvindo com uma enorme atenção, meneou firmemente a cabeça afirmando os dizeres de Aron.

— Pois bem, acredito que a respeito do chapéu, o dono dele pode lhe explicar melhor do que eu sobre, não é mesmo, Tony? — falou Aron, passando a palavra para o seu amigo.

Colocando o restante da torrada que estava saboreando de uma vez só na boca, limpando a mão suja com os farelos em sua calça, Antony começou a se explicar:

— Esse chapéu foi do meu pai, e ele, bem... ele me deixou, além do chapéu, um império de anos para governar. Ele e eu éramos... éramos... — tentava falar Tony, tímido. 

— Eles eram traficantes de armas e drogas, além de se darem muito bem com esquemas fraudulentos — completou Aron, dando uma risadinha, notando o acanhamento do seu amigo.

— Sim. Tudo o que aprendi sobre essas negociações foi devido aos ensinamentos do meu pai — falou Tony, rompendo sutilmente a sua envergonhação, demonstrando um pouco de orgulho com a mão no peito. — Éramos imparáveis, invejados, temidos, poderosos. Fomos os donos da Itália. — Completou, se empolgando.

— Então você acha que a sua morte teve a ver com o que você fazia? — Perguntou Guga na ponta da poltrona, excitado em ouvir sobre a vida de Tony.

— Eu ainda não sei ao certo, pirralho. Bom palpite. Gostaria muito de saber pra sair daqui — respondeu Tony, com o semblante triste. — Este lugar, apesar de tranquilo, te muda com o passar do tempo. Mas enfim, continuando, o meu pai sim foi morto pelo seu ofício e sabia quem o havia matado, sem dúvidas. Gostaria de encontrá-lo aqui, mas ele foi encurralado por Marco Donie e seus capangas numa tarde de domingo em Palermo. Uma morte terrível que levou eu e a minha esposa a nos exilarmos para o Brasil em seguida. A Itália já não era mais segura para nós. Foi aí que comecei a me reestruturar por esse país maravilhoso, começando do zero o império que perdi precocemente.

Guga voltou as mãos ao queixo e ficou pensativo. Jovem e bastante inteligente, de imediato assimilou rapidamente todas as informações ali passadas para ele. Logo, a sua cabecinha se tornou um caldeirão de perguntas para os dois homens que estavam ali à sua frente.

— Apesar de saber pela minha mãe que o que você fazia era errado, eu sinto muito por tudo, Tony. E você, Aron? Como acha que morreu? — Perguntou o garoto, curioso.

— Sou um dos poucos que nasceram aqui, Gustavo. Brotei do chão, como uma planta, pois foi assim como o criador quis. Venho de uma linhagem de conselheiros nativos desta terra tão antiga quanto a própria existência do universo — Respondeu Aron empolgado, após levantar um tímido sorriso, tomando mais um gole de café. — Sou da terceira geração deles, e a minha função aqui é garantir que tudo funcione como deveria funcionar até a minha aposentadoria, e é aí que você entra nesta história.

— Como assim? — Perguntou Guga, surpreso.

— O chapéu. Ele não surgiu do acaso. — Falou o conselheiro, tomando agora um tom bastante sério, levantando-se com certa dificuldade da poltrona e deixando a xícara de café sobre o cômodo à sua frente. — Um outro conselheiro daqui que vive além das montanhas celestes cansou-se de seguir aquilo que lhe foi imposto. Soube-se que ele se aliou com alguém que possui algum tipo de relação com Tony e que esse indivíduo, cansado de vagar por estas terras cinzentas, buscou um meio para conectar o seu mundo com o nosso no propósito de fazer com que todos que aqui quisessem invadissem o seu lar, dos simples residentes às criaturas mais perigosas que o seu mundo jamais viu. Parece que ele conseguiu criar essa conexão, e a prova está aí, na sua cabeça.

— Mas... se ele conseguiu, porque o chapéu tá comigo? — Perguntou Gustavo, confuso e sem piscar os olhos, impressionado com tudo o que estava a ouvir.

— Por que o ódio dele por mim interferiu no ritual — respondeu Tony, chateado e ajeitando-se na poltrona cruzando os seus braços cheios de tatuagens, dando um longo suspiro. — Provavelmente, algum Donie ainda guarda bastante rancor de mim. Segundo Aron, durante o ato de feitiçaria, essa pessoa acabou sem querer trazendo a minha imagem à sua mente. Logo, ao invés do objeto escolhido por ele ser o seu próprio chapéu, foi o meu.

— Então, muito simples! A gente destrói ele e tá tudo resolvido, né? Nada de monstros ou espíritos vagando no meu mundo — Falou Guga, levantando-se com certa dificuldade após pegar impulso, sentindo o seu corpo desgrudar da poltrona e quase se desequilibrando, se aproximando de Tony.

— Infelizmente não, pirralho — respondeu Antony, trazendo um ar de tristeza ainda maior à sua fala.

— Soube-se através de vozes ecoadas além dos Montes Cinza-claro e Verde-escuro que o mal ainda trabalha para conseguir o seu feito. — Revelou Aron, preocupado. — Incansavelmente, o rival de Antony continua a objetivar cada vez mais a sua meta em sua mente, estimando-se de que muito provavelmente, ele conseguirá sim concluir o seu objetivo muito em breve e na próxima tentativa.

— Tá... legal... entendi... mas tem um porém pessoal... aonde eu entro nisso tudo?! — Perguntou Gustavo, suando frio e temendo a resposta.

— Você é a mais confiável pessoa que consegue usar o chapéu dos dois mundos e um dos poucos do seu universo que consegue utilizá-lo. Temos que garantir que isso continue assim, e usar isso ao nosso favor — disse Aron, colocando a mão sobre o ombro direito de Guga.

Antes que o garoto pudesse perguntar o que ele poderia fazer com isso, Antony continuou:

— A chave para derrotar Donie não está exatamente só aqui, mas também no seu mundo. A única maneira de fazê-lo parar, é o tirando daqui. — Explicou Tony.

— E como se faz isso? — Perguntou Gustavo, tremendo.

— Fazendo ele descobrir o que causou a sua morte. Assim como todos daqui, ele não sabe como morreu. Teremos que fazer isso juntos — respondeu Tony, confiante.

Naquele momento, Gustavo percebia que estava envolvido em algo muito maior do que ele. Sua respiração começava a pesar conforme ia pensando nas palavras ditas por Antony e o conselheiro. Um frio na barriga congelava cada membro do seu corpo junto à umidade que o ambiente submerso lhe trazia e também um tremendo pesar em seus ombros o fazia sentir-se extremamente confuso do que fazer. Era só uma criança de treze anos que ainda estava a começar a conhecer a vida, e agora não só a sua como a de muita gente dependia dele.

— Pessoal, eu... eu... p... preciso de... de... um tempo... eu posso... — falou Guga, colocando a mão no peito com falta de ar, no que lhe parecia ser uma crise de nervosismo. Antes que pudesse terminar a sua frase, Aron completou:

— Acalme-se. Já esperava essa sua reação, meu jovem, e lhe compreendo. Acredito que já conversamos demais por hoje. Vá para casa, abrace aqueles que ama e descanse.

Apenas concordando com Aron, Gustavo, acompanhado do conselheiro e de Tony, deixou o submarino após ele emergir e ficou de frente para os dois, após passarem pelo portão de aço e ficarem próximos de uma árvore frutífera bastante peculiar que lá havia. Ainda estava ali, diante de si, o belíssimo entardecer, com o sol a esquentar a sua face gelada. Achava que estaria tudo escuro ao sair de lá, mas ainda era um fim de tarde. Conseguintemente, Aron lhe disse as últimas palavras antes do garoto retirar o chapéu:

— Quando quiser e estiver com vontade e coragem, pode voltar aqui, a qualquer hora, nesse mesmo local — disse o conselheiro.

— Certo, até mais — falou Guga, dando a mão aos dois senhores, esbanjando cordialidade.

Retirou então vagarosamente o chapéu. Tudo ao seu redor estava escuro, exceto por uma luz que refletia em  uma enorme cruz vermelha no alto, à sua frente. Já era muito tarde da noite no seu mundo e, ao se aproximar da única claridade que vira, percebeu que estava de frente ao hospital da sua cidade. Estimava mentalmente que dali, chegaria em quinze minutos na sua residência. Além da certeza da grande distância que percorreria até o seu lar, sabia também que levaria uma bronca colossal da sua mãe.







O chapéu de Antony CobrichOnde histórias criam vida. Descubra agora