Capítulo 9 - O beco sem saída

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Novamente sentiu a brisa estranha daquele local de poucas cores em seu rosto, que fazia os seus cabelos encaracolados dançarem no ritmo da leve ventania gélida que lhe acariciava a face com carinho. Encarou as nuvens que se contrastavam com o brilho amarelado e sem vida do sol, este que eternamente nunca dava espaço para a noite. "Estranho, aqui parece ser sempre entardecer", pensou Guga enquanto admirava parado todo o cenário peculiar que lhe cercava.

— Fico feliz em ver que você veio, pirralho — disse Antony de cima de uma árvore de galhos prateados dando um pequeno susto em Guga, comendo algumas frutas pequenas que continham folhas enormes as envolvendo, desenrolando-as com cuidado — Como foi a vinda até aqui? — Perguntou.

— Foi tranquila, só tou preocupado com a hora que voltarei pra casa — respondeu Gustavo, olhando para o relógio em seu pulso e se aproximando da árvore em que Tony estava.

— O conselheiro me disse que você falaria algo assim quando viesse. Engraçado como ele consegue saber tanto das coisas. Inclusive ele disse que em breve daremos um jeito nisso — falou Antony saltando do galho em que estava, aproximando-se do garoto. — Quer um pouco? — Perguntou Tony esticando a mão para Guga, oferecendo-lhe a fruta peculiar.

— O que é isso? — Perguntou Gustavo olhando a frutinha branca e estranha na mão de Antony, já desenrolada.

— São memoritas, ótimas pra quem não tá com a memória muito boa — respondeu Tony desviando o olhar para baixo, chateando-se. — Sinceramente, nem sei se funcionam tão bem assim. Comi milhares desde que cheguei aqui e a minha memória parece só piorar para com lembranças do meu passado. Mas enfim, ao menos tem gosto de frango, pelo menos me lembro do gosto de um. Tome, pode pegar — falou, esticando a mão para perto do rosto do menino.

O garoto pegou e, na primeira mordida, um gosto amargo veio até o céu da sua boca, fazendo o garoto cuspir de imediato a memorita já totalmente desmanchada pelo seu mastigar. Um gosto tão ruim que sentiu a sua língua ficar dormente com tal sabor tão forte.

— Certeza que tem gosto de frango? — Perguntou Guga, com olhos e testa enrugados ainda sentindo o amargar da fruta em seu paladar.

— Então, parando agora pra pensar... não tenho mais certeza — respondeu Antony dando uma leve risada ao ver a reação do garoto. — Venha beber uma água quentinha aqui na minha casa antes de irmos embora, talvez tire esse gosto da sua boca. Aproveitarei pra pegar algumas algas do bar que um cliente meu comprou.

— Algas... do bar? — Perguntou Guga surpreso, ainda com a língua para fora. — Não seriam algas do mar?

— Não, pirralho. São algas do bar mesmo. Elas nascem perto dos bares da cidade, regadas do puro choro de dor daqueles que bebem pra esquecer os seus problemas. Sou um vendedor delas. São ótimas pra quem está altamente debilitado sentimentalmente quando preparadas do jeito certo.

Após a explicação à Guga, ambos entraram na embarcação de Antony e, após aliviar o gosto ruim com a água cor-de-rosa que ele lhe ofereceu, juntos começaram a caminhar por Monte Cinza, com Tony carregando uma mala recheada de algas do bar.

— Pra onde exatamente estamos indo? — Perguntou Gustavo.

— Para a rua dos marmoteiros vender essas algas e, depois, para o beco sem saída — respondeu Tony, dando passos sofridos por causa do peso da mala.

— Beco sem saída? O que tem lá? — Perguntou Guga, curioso.

— Vamos procurar a... a velha muda — respondeu Antony, ficando um pouco preocupado.

— Que maldade apelidar alguém assim — comentou Guga.

— Não, não, pirralho, ela que se nomeia assim — falou Antony, olhando para o garoto. — O conselheiro disse que ela revelaria pra nós parte do que devemos fazer aqui pra começar a resolver a nossa situação. Na verdade, ele nem deveria ter dito tudo o que nos disse naquele nosso encontro. Ele devia estar bem desesperado pra ter nos procurado.

O garoto nada mais disse, ficando reflexivo com o que ouvira. Sua mente logo distraiu-se observando o local por onde estavam andando, voltando o seu olhar para o chão e notando que estava pisando sobre paralelepípedos colocados pelas ruas de forma vertical em vez de horizontal, como estava acostumado a ver em alguns locais da sua cidade. Tinha a impressão de que todos estavam soltos e, a todo momento, tinha a sensação de que o chão se abriria sob seus pés.

Guga e Tony chegaram à feira de Monte Cinza, que estava bastante movimentada como no outro dia em que estiveram ali. Uma fumaça enorme envolvia parte do local como uma neblina, vinda das frituras que alguns comerciantes faziam no local, tornando a visão dos que estavam ali um pouco embaçada e presenteando os seus narizes com o cheiro gostoso de pasteizinhos de algo que Guga nem imaginava ser, mas que lhe dava água na boca. Gritos por todos os lados de vendedores que procuravam a atenção dos seus clientes pareciam mais um cabo de guerra vocal para ver quem conseguia puxar mais cidadãos às suas barracas. 

— Toninho! Vem cá! — Gritou um vendedor diferente de tudo o que Gustavo já vira para Antony, abrindo os seus braços, soltando uma gargalhada grave e desajeitada. — Elas estão aqui, não é? — Perguntou, apontando para a mala de Antony.

— Sim meu caro amigo, estão aqui como você pediu. Já foram pesadas lá em minha casa, Robério — falou Tony.

Guga ficou a encarar o homem estranho enquanto ele conversava com o seu novo amigo. Possuía pouquíssimo cabelo na cabeça, com fios ralinhos e verdes, e um bigode preto que chegava a tocar o chão. Suas mãos de metal deixavam Gustavo um pouco assustado, porém, ainda mais fascinado com pessoas tão curiosas que viviam naquele lugar.

— E esse garotinho aí, é algum filho perdido seu? — Perguntou Robério, soltando mais uma gargalhada.

— Definitivamente não, nem dá pra ter filhos aqui, esqueceu? — Respondeu Tony, ficando um pouco nervoso. — Esse aqui é um sobrinho de um amigo meu, né, Tiago? — Prosseguiu Antony a falar.

O garoto apenas meneou a cabeça, confirmando a mentira que Antony inventou.

— Robério, me desculpe mas hoje estou com um pouco de pressa. Preciso levar esse pequeno aqui para a casa da mãe. Mais tarde vamos sair pro bar dos afogados, o que me diz? — Perguntou Tony.

—Ah, claro! Sim meu grande amigo! Fico à sua espera. Até mais tarde então — respondeu Robério, dando uns tapinhas no ombro do seu amigo.

Logo, após se despedirem, Antony já ia andando rapidamente quando foi interrompido por Robério:

— Antony! O seu pagamento! — Gritou Robério com um saco de pano cheio de moedas nas mãos.

— Ah sim, obrigado! — Agradeceu Tony, indo embora com Gustavo.

Afastando-se da feira, os dois seguiram andando por várias ruas praticamente desertas, até que se depararam com uma placa que dizia:

Beco sem saída, local para os desesperados, lar daqueles que muito já ofereceram, mas que  muito ainda podem oferecer.

— É aqui — falou Antony colocando a mão no próprio pescoço, se sentindo um pouco desconfortável.

Era um beco bem escuro, com uma iluminação bastante precária apesar de ainda ser dia. Seus muros altos formavam sombras bem densas, o espaço era largo e continha várias portas de casas em ambos os lados, com letreiros do lado de fora que indicavam nomes como "O tinteiro", "Alfaiate de mãos", "Porão dos iludidos", dentre vários outros.

— Tony, porque mentiu para Robério? — Perguntou Guga.

— Você não é natural daqui, pirralho. É sempre bom evitar possíveis dores de cabeça — respondeu Antony. — Vem comigo, e não encare ninguém. —Falou, colocando a mão por cima do ombro do garoto.


O chapéu de Antony CobrichOnde histórias criam vida. Descubra agora