Prólogo

2.5K 198 56
                                    

Seus olhos cintilavam de um modo diferente; parecia não haver brilho, mesmo o contemplando todas as tardes no parquinho. A menina parava com seu vestido vibrante em frente aos brinquedos, olhava para as outras crianças e desfazia o sorriso animado que iluminava seu rosto, então retornava para os bancos de madeira onde sentava ao lado de uma mulher. Os atos da menina de cabelos azuis repetiam-se todas as tardes, seus olhos perdiam o brilho a cada dia desperdiçado e as roupas ficavam mais longas; mais sufocantes. Começou com um par de meias-calça, então logo a viu vestindo calças, blusas de mangas compridas e, por fim, casacos pesados mesmo nos dias mais quentes. Certamente havia algo de errado com aquela menina, e estranhamente isto o preocupava, mas Karma não tinha culhão para perguntar a ela. Na verdade, não temia sua reação, mas, sim, a mulher que a assombrava por trás; olhos afiados e cruéis, sorrisos falsos e desonestos, ofuscados por sua aparência jovem e bela.
Notara mais uma vez as roupas de inverno na menina de cabelos azuis. A cabeça doía somente de pensar naquela garota, o fazia com tanta frequência, já tornou-se parte de sua rotina. Observou-a caminhar pelo gramado sem ânimo, ela parou os sapatinhos rosados e brilhantes próximos à caixa de areia, olhou intensamente para as garotinhas brincando de boneca bem à frente, e girou os calcanhares para voltar aos bancos. Ele não suportava ver aquilo outra vez, estava o entediando. Karma levantou do balanço e caminhou em direção a ela, no entanto, antes que pudesse se manifestar e rasgar o roteiro que seguia, as outras meninas para quem ela olhava chamaram-na de repente. Olhou-as por cima do ombro com ar de incredulidade, virando para o grupo em seguida e posicionando-se no lugar anterior, evitando chegar um milímetro a mais perto da areia. Os olhos dela, que assemelhavam-se a safiras reluzentes, ganharam vida pela primeira vez em semanas — isso o surpreendeu. Sequer recordava da sensação estranha no estômago quando via aquele brilho.
Ambos esperaram pacientemente a maior do grupo voltar a falar, esta sorria de canto a canto, usando um macacão estilo jardineiro. Ela levantou-se e pegou um bocado de areia com as mãos, ergueu o rosto para a menininha e jogou nela sem pensar duas vezes. As outras riram com o que fora feito, parabenizando a líder por tanta coragem. Karma não aguentou vê-la tão vulnerável, estremecendo debaixo de seu casaco enquanto olhava para os pés, envergonhada. Ele cerrou os punhos e puxou a líder pelo pulso.
— O que pensa que está fazendo!?
— Nada demais. Apenas dando o que a aberração merece, não é mesmo? — A líder afastou-se dele rapidamente, rindo de sua expressão irritada. — Qualé, Akabane. Não gosta mais desse tipo de brincadeira?
O menino relaxou os ombros, virando-se para a garotinha atrás de si. Seus olhares cruzaram. Voltou a atenção para a delinquente, balançando a cabeça em negação para respondê-la.
— Não. Agora pare de mexer com ela.
— Oh? Vai defender a namoradinha? — Uma terceira interveio, rindo junto as outras do comportamento de ambos.
O sangue ferveu, porém não havia nada que pudesse fazer para torná-las mais inteligentes. Ele suspirou e voltou o olhar para a azulada, acenando para a mesma antes de levá-la para longe das demais crianças. Segurou a mão cálida dela e ergueu o rosto da mesma, ajudando a retirar os grãos de areia com cuidado. Após alguns minutos, finalmente pôde contemplar um sorriso por parte dela, recebendo uma reverência em agradecimento junto de um murmúrio. Karma ficou envergonhado com tamanha formalidade, arrumando a postura da menina antes que alguém pudesse ver.
— Está tudo bem? — Perguntou a ela em um tom calmo, soltando a mão dela e afastando-se para dar espaço. A menina assentiu, diminuindo o sorriso; tornou-o falso de alguma forma, ficou feio e o incomodava, mas Karma não queria desfazê-lo. — Tem certeza? Acertaram seus olhos e...
— Estou bem. Muito obrigada.
— Não foi nada — Resmungou, baixando a cabeça. Estava nervoso e não sabia o porquê. — Me chamo Akabane Karma. Qual é o seu nome?
— Shiota Nagisa. — Ela estendeu a mão rapidamente — É um prazer conhecê-lo, Akabane-san.
— Pode me chamar pelo primeiro nome se quiser — Riu baixo, um tanto constrangido. Para que tanta formalidade sendo que eram apenas crianças? E sequer estavam em uma ocasião importante.
— Ah, tudo bem, Karma-kun. Pode fazer o mesmo, já que não o incomoda. — Nagisa guardou as mãos nos bolsos do casaco, então olhou ao redor com certa preocupação.
— Está tudo bem mesmo?
— Sim, sim.
— Parece preocupada, Nagisa-chan. Há algo de errado? — Inclinou a cabeça para observar seu rosto, recebendo um olhar vazio. Um arrepio passeou por todo o corpo, deixando o ruivo desconfortável. Retomou a postura anterior. — Não vi sua mãe hoje. Está sozinha?
— Conhece minha mãe? — Paralisou por um instante. Karma negou com um resmungo, fazendo a menina suspirar em alívio. O sorriso logo voltou para iluminar seu rosto. — Ela está ocupada, então pediu para que eu esperasse aqui.
— Entendo — Sussurrou em resposta, um pouco desconfiado pela entonação usada. Nagisa ainda parecia preocupada. Talvez não quisesse ser vista com ele? Por qual motivo?
— Eu... Vou voltar para os bancos e esperar minha mãe. Obrigada novamente, Karma-kun! Espero o ver amanhã! — Acenou para o menino ruivo enquanto afastava-se às pressas, mal dando a ele uma chance de continuar.
Um comportamento peculiar, olhos cansados e vazios, seu sorriso era falso como se alguém tivesse costurado seus lábios daquela forma; Nagisa parecia uma boneca estranha, e, por ser pálida como a lua em noites frias, aparentava ser frágil ao toque feito porcelana. Era assustador, além da voz tão calma que parecia um entorpecente, deixando Karma mais confuso do que já estava.
Viu as madeixas azuis caírem sobre os ombros, acima do casaco cinzento e tedioso. Ela sentou-se no banco de madeira, guardou as mãozinhas nos bolsos e baixou a cabeça, com o movimento fizera seu cabelo seguir o ritmo e cobrir uma parte de sua face. Por pouco Karma perde a visão que de extraordinariamente bela, mudou para uma expressão melancólica e dolorosa; ao menos parecia pelos olhos do menino. Os lábios dela estavam mordiscados e feridos, não ousaram curvar-se em um sorriso como aquele que havia recebido em agradecimento, e seus olhos azuis-safira não reluziam mais a luz interna naquele corpo frágil de porcelana. Nagisa transformou-se em boneca diante de todos, mas ninguém comentou ou sequer fez questão de reparar no ar denso que a rodeava no instante que sua mãe chegara para a buscar. Não notaram seu coração batendo lentamente enquanto pisava no gramado com certo medo, sendo levada a força pelo braço para o carro cinza como o céu em dias de chuva, ou viram o olhar suplicante por trás do vidro daquele mesmo carro. No entanto, dentre tantas pessoas, Karma reparou. Permaneceu parado no lugar em que fora deixado por ela e assistiu sua partida com pesar, acenou para Nagisa quando o carro ligou e, por um segundo, jurava ter visto vida naquele corpo inanimado, um alguém completamente diferente da menina que esteve observando acenou para ele e sorriu.

"Eles nunca tiveram contato visual ou tentaram conversar antes. Contudo, apesar das barreiras que os separava, Akabane Karma continuou a observá-la em silêncio durante todo o tempo, dia após dia. Ele conseguia ver naquela menina de cabelos azuis e olhos de safira, algo sombrio por trás de seus sorrisos; um segredo horrível. De fato, tinha alguma coisa com aquela garota — algo impossível de ignorar."

The Porcelain BoyOnde histórias criam vida. Descubra agora