[25] Quero ir para casa

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O clima leve do vestiário foi rapidamente substituído pela tensão que cresceu progressivamente, do momento em que os dois dividiram os caminhões que iriam os levar, até atingir o ponto máximo quando desceram dos veículos. 

O alvorecer ainda ameaçava acontecer, mas eles não conseguiam decidir o que seria pior: ver a cena grotesca claramente, iluminada pelos raios de sol, ou vivenciar a cena de terror naquele escuro. 

E realmente era aquilo que os invadia: terror.

Por todos os lados haviam corpos, gargantas cortadas, cabeças esmagadas ou totalmente destruídas por tiros a queima roupa. Eram homens, aqueles que haviam resistido e tentaram fugir, crianças que provavelmente haviam chorado demais, mulheres que deviam ter tentado intervir por seus filhos ou maridos. 

Tudo era tão angustiante que andar por entre aqueles corpos era como profanar a memória deles, o sofrimento pelo qual haviam passado, a dor e o terror que alguns ainda carregavam nos olhos sem luz. E não só os corpos os assustavam, não, nem a brutalidade pela qual haviam passado. O que era torturante, de cortar o coração, era o fato de que, conforme andavam mais para o centro do vilarejo, as inúmeras mulher, das mais diversas gerações, gritavam em plenos pulmões. Às vezes por encontrar um ente em meio aos corpos, às vezes por não encontrá-los. 

Talvez a dor de perdê-los para a morte, com a dignidade da luta pela vida, fosse menor do que perdê-los para aqueles que haviam causado aquilo. E aquilo sim, era assustador.

Por ordem de Scarlett todos os soldados deixaram os fuzil nos carros. Aquelas pessoas haviam passado por um trauma grande de mais com armas muito similares àquelas, tentar estabelecer alguma relação com aquelas armas como símbolo, em adição a barreira da língua, seria impossível. Então, para efeito de segurança, todos eles passaram empunhar apenas pistolas, em companhia a uma faca tática e, a nenhum momento, tiravam os coletes. 

Zöe ajudou bastante naquilo tudo. Além de médica, ela havia estudado durante um tempo em Johanesburgo o que lhe deu a oportunidade de conhecer Botswana e seus diversos dialetos e, com isso, sem muita dificuldade, conseguiu ganhar a confiança do povoado. Inclusive os assegurando que iriam enterrar os mortos, seguindo a tradição, mas que precisava cuidar dos vivos primeiros, e precisava da colaboração.

As crianças feridas passaram a ser cuidadas em uma escola que, após o ataque, havia sido desativada e, por ser um grande galpão, com apenas um alçapão para materiais, servia de enfermaria pediátrica, sob o cuidado de Olsem e Hiddleston. 

As mulheres e idosos ficaram no centro comunitário que havia ali, levemente mais apertado, mas  igualmente bem ventilado e iluminado, e que serviria para o serviço sob os cuidados de McAdams e Saldaña
O terceiro dia foi o mais triste de todos, Chris, Stan e Cavill, junto aos outros soldados passaram a madrugada inteira cavando as covas e o dia foi preenchido por cerimônias que, de tão silenciosas, traziam lágrimas aos olhos até dos mais reservados.

***

— Você está bem? — Scarlett se aproxima, vendo Chris sentado na sombra de uma das enfermarias, pernas esticadas, braços largados sobre o corpo, segurando um cantil entre as pernas e de olhos fechados. Dava pra ver as marcas de areia pelos braços e na regata que, um dia havia sido branca.

— Trezentos e vinte e duas, Scarlett. — ele não tem nem forças de seguir o pedido dela, estava muito cansado para aquilo, apenas ouve ela sentando-se ao lado dele, fazendo-a encarar. — Trezentos e vinte e duas covas. E não consigo nem ter raiva de quem fez isso, por que sei que fazem por toda essa cultura das guerrilhas que criam algo pavoroso nas mentes deles, como se isso precisasse ser feito. Mas… trezentos e vinte e duas. Eu já fiz isso antes, sim, cinquenta, no máximo, mas nenhuma criança. Hoje sessenta e duas não tinha nem treze anos. A maioria tinha por volta de sete a oito anos.

— A maioria tinha idade da Rose. — Ela suspira, tinha notado isso quando ajudou as mulheres a arrumarem os corpos. 

— Não é justo, sabe? Não consigo ver justiça aqui.

— Quando comecei a servir aqui foi a primeira coisa que notei. — ela confessa, pegando o cantil dele e tomando um gole da água. — Aqui não existe justiça. O que fazemos é o mínimo do que deveria ser feito. Vacinas? Curativos? Cirurgias de emergência? Por um tempo isso é o suficiente. Mas, a maioria anda dez a vinte quilômetros para conseguir água e só quando uma tragédia dessas acontece é que recebem um caminhão pipa, e tudo por que estamos aqui, caso contrário nem isso teriam. 

— É verdade. — ele serra a mandíbula, tomando um gole de água, fechando o cantil e voltando ele para o lugar. — Quero ir para casa. De verdade. Eu estava conseguindo gerenciar bem isso de saudade, mas quando se vê tanta gente chorando pela morte de quem ama vem aquele sentimento estranho de que eu devia estar em casa.

— Eu sei como é. — ela fecha os olhos tentando não chorar de novo. — Ajudei a preparar uma menina, Tanshi o nome dela. Tinha acabado de completar oito anos, adorava ir pra escolinha onde agora o irmão dela, de quatros anos, está com um braço amputado. Diziam que ela dançava pra todo lugar que andava, e vivia puxando as mulheres mais velhas pra dançarem com ela. — ela sente a mão dele apertando a dela, que repousava sobre o colo. — Ela tinha oito anos e era a luz do vilarejo inteiro, morreu tentando salvar o irmão de ser levado. 

— Isso é muito injusto. — ela o vê negar com a cabeça e esfregar o rosto com as mãos, o que a encoraja a mudar de assunto, aquilo já estava ficando muito pesado.

— Você precisa tomar um banho. — ela tenta limpar, sem sucesso a porção de areia do ombro dele. — Consegue ficar acordado para vigiar a enfermaria hoje? 

— Consigo, só preciso que me dê duas horas de cochilo antes. — ele olha por cima do ombro, encontrando o olhar carinhoso dela, confirmando com a cabeça. Ela estava triste, era óbvio, e tudo que ele queria era consolar ela — Queria te abraçar e dizer que tudo vai passar.

— Mas não vai. — ela sorri tristemente, se levantando e o ajudando a fazer o mesmo. — Vai tomar um banho e dorme um pouco, vou deixar o Sebastian lá até você chegar.  Levo a janta pra você quando estiver pronta.

SHOTGUNS - O REENCONTRO {EVANSSON AU}Onde histórias criam vida. Descubra agora