Capítulo 19

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Ao chegar no centro da sala de estar, o vejo. Ele está usando terno, sentado em uma postura perfeita em um dos sofares. Ele percebe que eu cheguei, mas não olha para mim imediatamente.

Ando devagar pela sala e me sento cautelosamente em um poltrona virada para o sofá, que está à sua direita. Não sei se devo dizer algumas coisa, lanço-lhe uma olhada rápida. Ele está olhando para o chão, parece tão, ou até mais nervoso que eu.

Tento me sentar do jeito mais reto que consigo, não é muito confortável, visto que eu estava acostumada a me sentar como uma pessoa normal, que não tem a postura completamente reta.

Após alguns minutos extremamente desconfortáveis, ele finalmente olha para mim cautelosamente. Sinto seu olhar queimar como fogo em minha pele, não sei se ouso olhar de volto, olho fixamente para o chão, sem saber o que fazer, até que ele finalmente diz com cautela:

— Você é igualzinha à sua mãe.

Essa definitivamente era uma coisa que eu jamais imaginei que sairia de sua boca, muito menos direcionando as palavras para mim. Finalmente olho de volta para ele. Ele tem certa felicidade em seus olhos. Não faço a menor idéia do que eu deveria responder.

— Seus olhos são lindos, como os dela, Alyssa — Ele diz.

— Obrigada — Eu digo corando.

Olho para os olhos dele nervosa, ele olha para o anel em meu dedo e gela.

— Esse anel... onde você o conseguiu? — Ele pergunta.

Gaguejo um pouco. Como poderia contar para ele que consegui o anel da minha própria mãe em uma loja após sua amante tê-lo vendido. Antes que eu possa responder, ele parece se lembrar de uma coisa extremamente importante.

— Quantos anos você tem? — Ele pergunta — 12? 13?

— 15 — Respondo, nem um pouco surpresa por ele não fazer idéia de quantos anos eu tinha.

Ele parece um pouco constrangido.

— Ah certo...então.. suponho que seu praxismo já tenha se revelado, não é? — Ele diz mantendo a voz extremamente baixa.

Arregalo os olhos completamente.

— O que? — Pergunto — Como você sabe disso?

Ele fez uma cara de confuso.

— Você não sabe que quando dois práxis tem um filho, o filho nasce práxi também? — Ele pergunta.

— Disso eu sei — Eu digo, me lembrando da conversa com o Sr. Pernin — O que eu não sabia era que você era práxi.

Ele acena com a cabeça.

— Bom, eu sou, e sua mãe também era — Ele diz.

— Achei que o meu poder era isolado — Eu digo entrando em devaneio.

— Não, Alyssa, seu poder é genético — Ele diz como se isso fosse uma coisa óbvia.

Descobrir que ambos dos meus pais são práxis era uma coisa tão completamente impensável, que eu duvidei por alguns segundos que ele estivesse falando a verdade, e tive medo de que fosse um truque antipráxi para confirmar meu praxismo e me matar em seguida.

— Mas... — Eu digo sem saber direito o que dizer — Qual o seu poder?

Ele olha para mim e faz a coisa mais surpreendente que ele poderia fazer: Dá risada.

— Tive o azar de não nascer com nenhum — Ele diz — E o seu poder?

Olho para o lado.

— Ainda não sei — Eu respondo.

— Ah — Ele diz — A quanto tempo você sabe que é práxi?

Penso um pouco, e me dou conta de que naquele dia fazia exatamente uma semana que eu havia descoberto sobre meu praxismo, mas parecia ser séculos a mais, tantas coisas novas que eu havia descoberto e...sentido. Repasso em minha cabeça os poderes sobre os quais eu havia aprendido. Telecinese, videntismo, zoopatia, retrocognição e autoscopia. Uau, todos eles pareciam bastante legais, e eu estava muito ansiosa para descobrir qual era o meu, me peguei desejando muito que fosse retrocognição ou telecinese. Eram tão legais!

— Uma semana — Eu respondo.

— Muito recente, você ainda vai descobrir, não é possível que tenhamos o azar de ter dois práxis sem poder na mesma família — Ele diz e sorri de novo.

Sorrio junto com ele.

— Achei que Leslie já tivesse conversado com você sobre isso — Ele diz.

Arregalo os olhos de novo.

— Leslie sabe? — Pergunto surpresa .

— Claro que ela sabe, acha que eu ia colocar alguma antipráxi para cuidar da minha filha? — Ele pergunta

— Mas.. ela nunca falou nada disso comigo — Eu digo

— Talvez tenha sido melhor descobrir naturalmente, acho que foi o conselho que dei para ela anos atrás — Ele diz — O poder só se desperta quando você atinge maturidade o suficiente para compreende-lo.

De repente, sou tomada por uma emoção enorme em imaginar meu pai conversando com Leslie sobre o que seria melhor para mim.

— E... Marlene? — Pergunto.

— Nunca conversei com ela sobre isso, e já fazem anos que nenhum espírito aparece para mim, então ela nunca desconfiou de nada - ele responde — Também nunca quis arriscar.

— Eu acho que ela é um pouco... antipráxi — Eu digo.

— Por que acha isso? — Ele pergunta.

— Ela meio que me escutou conversando sozinha... e agora me chama de bruxa — Eu respondo.

— Tem que ter mais cuidado ao conversar com espiritos — Meu pai diz — Talvez ela seja mesmo.

— Você não se importa em ser casado com uma antipráxi se você é um práxi? — Pergunto surpresa.

— Nós não estamos muito bem mesmo — Ele diz — Eu sei que ela só quer se aproveitar do meu dinheiro, acho que não vou ficar muito mais tempo com ela.

— Sério? — Pergunto surpresa.

— Sim — Ele diz com um sorriso triste — Só vamos fazer a última viagem para a suíça, que combinamos para o mês que vem, então vou terminar tudo.

— Ela não vai aceitar isso nem um pouco bem — Eu digo.

Ele dá de ombros, uma coisa que eu jamais o imaginaria fazendo com o seu jeito extremamente sério

— Vai ter que aceitar — Ele responde — Ela não é uma pessoa muito boa.

Concordo com a cabeça.

— Você já esteve na suíça, Alyssa? — Ele pergunta.

Dou risada.

— Não, nunca saí da cidade — Eu respondo.

Ele parece bastante surpreso.

— Por que não? — Ele pergunta.

— Precisa de autorização dos pais — Eu digo um pouco constrangida.

Ele parece tão constrangido quanto eu, em seguida esboça um olhar de tristeza e arrependimento.

— Eu sinto muito — Ele diz de repente.

— Por que? — Pergunto.

— Por ter sido um pai tão ausente — Ele diz com a voz fraca.

Olho em seus olhos, estão ficando vermelhos, começo a ficar emotiva. Olho para baixo.

— Tudo bem, já estou acostumada com isso — Eu digo, tentando ser o menos vitimista possível.

Vejo uma lágrima percorrer seu rosto.

— Filha... — Ele diz me olhando nos olhos, tenho muita dificuldade em encara-lo, e escutando-o me chamar daquele jeito, foi uma coisa completamente nova para mim, nunca havia sido chamada daquele jeito — Eu estou muito arrependido.

Olho para ele, seus olhos estão marejados, assim como os meus.

— Quando eu cheguei semana passada, eu te vi tão... bonita e... crescida — Ele diz tentando manter a voz firme — Percebi que já tinha perdido toda a sua infância, não quero perder mais fases, quero te conhecer.

Ele chega mais perto de mim. Ele estende a mão para mim. Eu devia segura-la? Sua mão estava ali parada no ar, eu não sabia o que fazer. Olhei para os seus olhos castanhos e segurei sua mão. Era calejada e áspera. Eu nunca havia tido contato físico com ele antes, foi uma sensação estranha, em toda a minha vida, eu nunca havia conversado com ninguém da minha família, ou ao menos conhecido-os. Aparentemente, não tinha nenhuma família além do meu pai, que não me notava. Mas naquele momento, me senti notada, de um jeito completamente diferente, completamente especial. Senti que uma parte perdida de mim havia sido reencontrada.

Deixo cair algumas lágrimas, ele também. Ficamos em um silêncio confortável nos olhando por alguns segundos. Nunca havia percebido que seus olhos eram tão escuros, eu achava muito bonita a forma como a pupila se camufla com a íris de pessoas com olhos escuros.

— Como está a escola? — Ele pergunta procurando por algum assunto para conversar comigo - Em que ano você está? Sexto?

Quase solto uma gargalhada.

— Estou no primeiro ano do ensino médio — Eu digo.

Ele esboça uma cara de perplexidade.

— Mas já? — Ele pergunta assustdo.

— Sim, já — Eu respondo rindo.

— E está achando difícil? — Ele me pergunta.

— Na verdade, não muito — Eu respondo.

— Já perdeu de ano alguma vez? — Ele pergunta.

— Não — Eu digo rindo. Em geral, eu ia bem em todas as matérias, não extremamente bem, mas eu conseguia passar da média sem nenhuma dificuldade.

— Que bom — Ele diz sorrindo — A escola é cara.

Eu sorrio, ele olha para o celular rápido.

— Tenho uma ligação agora — Ele diz com um tom de voz decepcionado.

— Tudo bem — Eu respondo.

Ele se levanta e olha para mim.

— Obrigado, filha — Ele diz.

— Pelo que? — Eu pergunto.

— Por ter aceitado conversar comigo — Ele diz — Depois de tanto tempo que não te dei o devido valor, eu não esperava que você fosse aparecer ao meu chamado.

Eu dou um sorriso, e ele sai da sala, já com o telefone no ouvido.

Fico sentada na mesma posição por alguns segundos, tentando absorver o que havia acabado de acontecer. Eu havia conversado com o meu pai, uma conversa de verdade, com mais de duas palavras. Fiquei olhando pela janela por um longo tempo, sem tentar contar as inúmeras lágrimas de felicidade  e emoção que brotavam em meus olhos.

A dor em minha cabeça ainda estava forte quando fui voltei para o quarto. Recebi uma visita de Maya e Mellie algumas horas mais tarde. Apesar de eu ter gostado muito de suas companhias, a agitação delas piorou um pouco minha dor.

Além dos CorposOnde histórias criam vida. Descubra agora