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Começar de novo. Ou recomeçar, como preferir. As pessoas que passaram por fases ruins ou fizeram mal a outros, usam do termo como busca pela rendição. Você "pode" recomeçar do zero se achar que deve.

Os skaikru não só deviam como mereciam. Desde que a primeira nave com cem adolescentes pousou na terra, alguns anos antes, uma vida inteira pareceu passar em menos de uma década.

Foram tantas surpresas boas e ruins, experiências, paixões e amizades verdadeiras que aqueles garotos viveram, que hoje é dificil e triste lembrar que a maioria deles estão mortos.

O mundo estava acabando pela segunda vez, Raven quase não conseguiu subir com a nave antes do missel atingir o vale, até então único pedaço de vida que restara na Terra...não mais. Pelo menos por uns dez anos.

A única forma de sobrevivência a longo prazo, era optar pela criogenia, por questão de qualidade de vida e segurança, afinal criminosos altamente perigosos convivendo com jovens e soldados com crenças divergentes como os que formavam o wonkru, não resultaria em boa coisa em um ou dois anos.

Então todos eles foram dormir nas centenas de módulos por pelo menos uma década, ate que tudo tivesse voltado ao normal la embaixo.

Pode imaginar então como pareceu preocupante para alguém, acordar em uma nave onde centenas de pessoas ainda dormiam nas capsulas ao lado. Sem ninguém acordado para dar boas vindas ou pior, despertar antes da hora.

Felizmente - ou não, duas cápsulas seriam abertas. A solidão poderia existir mas não por completo. Afinal duas mentes pensam melhor que uma só, e enquanto houver alguma voz que não oriunde da sua cabeça, você estará são. Mas se o silêncio for a única coisa que restar...

Um único cérebro, mesmo que poderoso, não seria capaz de obrigar um corpo sem um coração a funcionar

E sozinho, perdido entre o nada, pela eternidade, um coração jamais conseguiria suportar.
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Clarke não saberia explicar porque a cápsula dela desligou e abriu sozinha, quando o silêncio e a escuridão ainda preenchia a enorme sala de criogenia.

Estava frio. Podia lembrar que quando se deitou a temperatura estava agradável, talvez pelo excesso calor humano dos que transitavam pra suas capsulas no momento. Mas agora, somente com a dela aberta e a sala no mais completo vazio, um arrepio percorreu sua espinha, não por pressentimento negativo, apenas pelo ar frio.

Ela se sentia revigorada, ha muito tempo não dormia o suficiente pra se sentir bem. Levantou-se e empurrou a cápsula de volta, olhou ao redor e nenhuma outra parecia prestes a abrir também. Clarke estranhou, se ja tinham se passado os anos necessários, por que só ela acordou? Alguma coisa deu errado? Não pretendia se preocupar, afinal ela mesmo sabia que as coisas ruins não aconteciam do nada, se bem que...situações perigosas costumavam segui-la como uma sombra

Talvez o universo tenha escolhido ela pra ficar fora, mesmo depois de tudo, la no fundo ela ainda não se sentia merecedora da dadiva da vida, de recomeçar em um novo lugar. O problema estava nela, não no local...Ou talvez ela tivesse sonhando. Faria mais sentido isso ser um pesadelo ou um sonho estranho, e quando ela acordasse "de verdade" nem lembraria da estranheza disso.

Ao invés de se martirizar e enloquecer sugerindo possibilidades que talvez nem fossem reais, ela foi procurar respostas. Deixou a sala e seguiu num corredor sentido contrário, o povo deles não tinham estado daquele lado mesmo quando todos se acomodaram na nave, o que era no minimo suspeito, é como se o que antes era uma parede cinza, deu lugar a um novo corredor estreito e branco, distoante de toda cor morta daquele lugar. Com tudo o que aconteceu na terra anteriormente, não sobrara tempo pra explorar a Eligius, e pelo incidente de agora, ela considerou que tempo não perderia mais, então por que não?

O silêncio se tornava aterrorizante para qualquer um que não fosse a comandante da morte, pra ela era apenas ter paz. Clarke seguiu por aquela passagem incomum e a cada passo que dava tinha mais certeza que nenhum deles pisara ali, o piso estava intocável demais pra ja ter sido explorado.

Ela então chegou a uma parte que a surpreendeu, ainda que tenha sido construida pra transportar prisioneiros, tinha um espaço luxuoso reservado provavelmente para a tripulação. Uma piscina imensa começava logo no início do corredor e se estendia por todo centro da sala. Os olhos dela brilharam, seu sonho de menina, nunca vira uma mais do que nas fotos de revistas sobre mundo antes das bombas, que tinha em seu quarto na arca.

Por um segundo ela considerou estar morta, não fazia o menor sentido aquela piscina ali, ou o que faria mais sentido e ela ja tinha pensado antes, estava sonhando. Mas por que com algo tão aleatório? Nunca tinha visto uma piscina em vida pra sonhar com uma, não é necessário conhecer as coisas primeiro antes de se imaginar com elas?

Nem devia estar acordada...Mas estava, e quando pôs o dedinho do pé na agua, sentiu que era real. Ela não hesitaria de novo, despiu-se e mergulhou na agua aquecida. Fechou os olhos e flutuando passou minutos infinitos, sem pensar, sem fazer barulho, só escutando as bolhas d'água e a sua respiração.

Aquilo era estar em paz. Ela achou que nunca sentiria a sensação de verdade. Sempre ouvia as pessoas falarem, os povos todos sempre buscavam a paz, inclusive o seu, mas ter de fato momentos assim, nunca tiveram.

Não houve um só dia depois que chegaram a terra que ela pôde dizer que não sentiu nenhuma preocupação, seja por algo passado ou que ainda viria. Não, ela nunca teve paz.

Podia até dizer que teve uma vez sim, enquanto seu pai ainda era vivo, quando ela vinha de uma familia feliz. Seus pais não eram tão perfeitos como ela os via, principalmente sua mãe, quem mais demorou de perdoar. Mas viviam bem e ela pelo menos, leiga dos problemas do mundo, sentiu o gosto da paz antes de perder o pai, o melhor amigo, a confiança, a segurança e o controle do seu destino.

É, Clarke não saberia se restara ainda algo pra ela fingir viver numa bolha perfeita e ser ignorante ao lado de fora, mas se algum dia ficar em paz de novo, esperava que a sensação fosse a mesma que a de agora, a de flutuar numa piscina aquecida.

𝐁𝐄𝐘𝐎𝐍𝐃 𝐈𝐍𝐅𝐈𝐍𝐈𝐓𝐄 ² | 𝙱𝚎𝚕𝚕𝚊𝚛𝚔𝚎Where stories live. Discover now