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Camila point of view



Eu odiava Miami por um único motivo. Miami havia tirado tudo de mim.


Sinuhe e Alejandro Cabello. Essas foram as primeiras coisas que aquela cidade tirou de mim, sem aviso, sem que eu me preparasse, sem que eu deixasse. Foram arrancados da minha vida de uma forma tão bruta que em momentos aleatórios do meu dia eu sentia meu peito borbulhar ao lembrar dos meus pais. Lembrava de como a mamãe sorria sempre que Karla desenhava a nossa família, de como o papai ficava alegre e encantado ao colocar o desenho na geladeira. De quando o papai me ensinou a andar de bicicleta e a mamãe acabou ficando para trás para cuidar do joelho ralado de Karla que sempre caia ao dar três pedaladas. Ou  de quando a mamãe ficou extremamente brava quando encontrou uma garrafa de vodka na minha mochila e de como o papai gargalhou quando eu coloquei a culpa em Karla.


Até que em uma noite qualquer Miami tirou isso de mim. Talvez se o papai tivesse me escutado quando eu falei que ir para Miami tentar expandir os negócios para que pudéssemos nos mudar era uma péssima ideia, estávamos ótimos em Boston. Por que mudar isso? Por que logo Miami? Se ele tivesse me escutado talvez ainda estariam aqui. Se a mamãe tivesse esquecido onde deixou as chaves como sempre esquecia, um pouquinho mais e aquele caminhão de carga nunca teria cruzado o caminho deles. Mas eles estavam apressados demais para ir até Miami. Se fosse um voo seria mais seguro, mais rápido. Eles com certeza teriam voltado para mim e para Karla. Eram muitos "e se's" que poderiam mudar tudo.

Estávamos com 21 anos na época, Karla estava cursando economia na Universidade de Boston e eu estava trabalhando em uma biblioteca em Bay Village mesmo, eu sempre gostava de estar próximo de casa. E quando Karla chegou a tempo somente de assistir o enterro foi um momento divisor em nossa relação. Eu só não tinha percebido isso ainda. Ainda estava inerte a tudo o que tinha acontecido. Usei o meu fundo emergencial que seria usado para uma faculdade que eu nunca iria, cuidei do velório, notifiquei amigos e clientes fiéis. Quando Karla chegou minha ficha caiu e eu lembro de nunca ter abraçado minha irmã tão apertado como abracei naquele dia. De como ela chorou tão forte em meu ombro quando o enterro estava acontecendo. Era só nós duas naquele momento e eu estava sendo forte e acolheria Karla quantas vezes fossem necessárias, eu só não podia deixar ela cair mais uma vez e me levar consigo.

No ano seguinte, Karla se formou. O testamento dos nossos pais foi lido e os bens e a herança foram divididos. Como arquitetos bem sucedidos em Boston, não foi surpresa nenhuma em saber que a quantia em dinheiro e a empresa eram os que mais valiam. Decidimos então vender as ações da empresa, já que Karla não queria tocar os negócios e eu não tinha familiaridade nenhuma com o ramo e também não tinha psicológico para tal. Vendemos a casa que por muito tempo foi o nosso lar e então foi quando eu decidi viajar o mundo buscando algo e Karla falou que ficaria e iria para Miami. E então a única pessoa do meu sangue que me restou também estava sendo tirada de mim.


Sempre foi Miami, sempre foi aquela maldita cidade.



15 de março de 2024, Aeroporto Internacional de Dublin, Irlanda.



É o nosso voo. - Karla me tirou dos meus pensamentos quando a voz robótica surgiu chamando o voo 828 com destino a Miami, Estado Unidos.

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