Quarentena, dias 39 e 40

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Mariana

As janelas do apartamento de Bianca davam para um prédio. Por entre os dois edifícios, uma luz alaranjada despontava com o cair da noite e eu observava os resquícios do sol no chão da rua lá embaixo, desejando ser um dos pedestres que por ali passavam. A quarentena forçada e interminável fazia crescer em mim desejos bobos assim.

Mas, tal como todos os desejos que corriam por mim, este também teria que esperar.

Esperar era tudo que eu fazia há dias. Minha vida estava toda em espera da próxima etapa começar. E eu não podia sequer culpar a pandemia por isso — várias eram as minhas circunstâncias pessoais que impediam as coisas de avançarem em minha vida. A farsa do meu namoro era a principal delas, pois eu não conseguia seguir meus projetos profissionais sem abrir para o público que eu não estava mais morando com meu ex.

Porém, ainda que aquele fosse o maior obstáculo em minha vida, não era ele que ocupava minha mente naquele instante. Minha relação com Bianca que era. Eu não tinha como negar: nossa interação estava diferente, parecíamos nos equilibrar em corda bamba. E as pequenas e diárias falas de Bianca eram um peso extra que tornava impossível me manter em pé sobre a corda frouxa.

Durante a live com Marcela no outro dia, Bianca flertou com nossa amiga em comum sem pudores. E o problema não estava nos flertes ou nas insinuações em si, mas no brilho do seu olhar e no sorriso sacana de lado. As palavras podiam ser brincadeiras, mas a expressão não era.

E mesmo sabendo que não deveria, eu não conseguia parar de pensar nisso. Tampouco eu conseguia chegar a qualquer conclusão que fosse.

Eu tinha certeza, no entanto, que, quando eu me mudasse para meu novo apê — quando eu não estivesse mais tão envolvida no universo de Bianca —, seria mais fácil fazer sentido do que eu sentia. E justamente por isso que eu precisava tanto sair de lá. Ainda que eu quisesse aceitar a proposta de Bianca de ficar mais tempo em seu apartamento, eu precisava me afastar. Eu precisava respirar ares não relacionados a ela.

Por isso mesmo que agora, depois de gravar meu último stories do dia, eu debatia se deveria ou não levar para o meu loft as três camisetas de Bianca que eu tinha roubado. Parecia contraditório não querer estar rodeada pelos pertences e a energia de Bianca em sua casa, mas vestir suas camisetas.

O problema é que eu queria tanto as camisetas.

Já tinha sido difícil escolher apenas três. Quando pedi abrigo, não levei muitas roupas — eu não esperava ficar muitos dias. Conforme fui ficando, fiquei mais à vontade para usar as roupas de Bianca. O que só piorou depois que começamos a transar. Com exceção das vezes que eu gravava stories na casa dela, eu só usava as camisetas dela. Elas davam um conforto para além do macio do algodão desgastado.

Decidindo levar as três camisetas, voltei para perto da cama e as dobrei dentro da mala que eu arrumava. Eu tinha ainda uns dias até me mudar, mas fazer minhas malas me distraia da teia desordenada de sentimentos que crescia em mim.

Eu estava prestes a começar a organizar as minhas calças quando a porta do quarto se abriu. Quase dei um pulo de susto: Bianca tinha um jeito bem barulhento de se anunciar nos ambientes.

— Estou morta — ela exclamou. — Hoje eu tive, sério, uma, duas... seis reuniões. E ainda tive que fazer a live e o challenge do Boca Rosa Hair, nossa, tanta coisa... Estou morta.

Me virei para admirar Bianca com sua maquiagem feita e parte do cabelo preso em um coque alto. Desci meus olhos do batom vermelho queimado que acompanhava o desenho da sua boca até o nó da camiseta branca sob seus seios. Depois de nem sei mais quantos dias morando aqui, seria normal estar acostumada ao magnetismo de Bianca. Seria até esperado. Porém, havia momentos que ela aparecia na minha frente e meu cérebro entrava em pane.

Quarentena em São PauloOnde histórias criam vida. Descubra agora