Quarentena, dia 41 - parte I

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Bianca

Parte I


Parecia um tanto estranho observar alguém dormindo, então me virei para a parede, de costas para Mari, e respirei fundo. Minha respiração reverberou no silêncio do quarto e eu tentei achar um ponto de paz dentro de mim — foi, porém, inútil: eu só conseguia pensar que era minha penúltima manhã acordando ao lado de Mari.

Soltei o ar pela boca mais uma vez, meu abdômen se contraindo, e minha garganta coçou. Desde ontem um incômodo familiar se forçava por ali e eu deveria levantar e tomar um chá para não piorar. O calor entre as cobertas, contudo, tornava a cama mais atraente. E o corpo de Mari colado ao meu, quentinho com apenas a ponta do nariz gelada contra meu ombro, deixava a cama ainda mais irresistível. Acabei ficando ali por longos minutos.

Até que senti muita vontade de fazer xixi.

Com cuidado para não acordar Mariana, me levantei da cama. Ela se remexeu sem acordar, e eu ajeitei a coberta que tinha deslizado com o movimento. Cobri seus ombros e o braço que se estendeu pelo meu lado da cama, e me dirigi até o banheiro.

Eu segui minha rotina matinal, com a diferença que preparei um chá no lugar do café. Sentada à mesa, observei a água quente ganhar um tom amarelado do chá de hortelã e procurei meu celular. Encontrei-o ainda na cozinha, as marcas do meu polegar sujo de farinha por toda a tela. Eu tinha, no dia anterior, compartilhado com meus seguidores minha experiência fazendo pizza. Milagrosamente, a pizza tinha saído da exata forma que eu desejava; no entanto, minha cozinha ficou parecendo cenário de novela pós guerra de comida.

Constatando que o celular estava descarregado, coloquei-o na tomada. A quietude da manhã e a falta de celular me impulsionaram a abrir meu planner em pleno domingo de manhã: averiguei os horários das reuniões e sublinhei os itens mais importantes. Minha vida estava num daqueles momentos com potencial de definir todo meu futuro e eu planejava todos os pormenores para nada dar errado.

Ouvi quando Mari acordou porque ela cumprimentou Luéte alto o suficiente. Fechei o planner e engoli o resto do chá, apressada — mesmo revisando o meu trabalho, a lembrança de que Mari estava indo embora pulsava dentro de mim, me pressionando a passar aquelas últimas vinte e quatro horas do lado dela da mesma forma que eu tinha feito no dia anterior.

— Bom dia! — exclamei quando encontrei Mari no nosso banheiro, em frente ao espelho, o cabelo todo bagunçado, escovando os dentes. Ela me olhou pelo reflexo do espelho sem interromper sua escovação, sorrindo o tanto quanto dava com uma escova na boca. Me aproximei, dando um beijo no seu ombro, bem onde a camiseta grande demais caia, e sorri para ela através do espelho antes de focar em meu cabelo bagunçado.

Eu geralmente não era lá muito fã de acordar na presença de alguém com quem eu estivesse ficando. Era desconfortável e até hoje eu não sabia muito bem como aquele ritual deveria seguir — não quando, na maioria das vezes, eu não pretendia repetir a noite. Eu me sentia incerta com todos os nós no meu cabelo, meu hálito de bebida, a remela no canto do olho, a bagunça do meu banheiro. Não era bem a imagem que eu gostava de passar, mas eu sempre fingia a maior naturalidade e resistia a vontade de pedir a pessoa para sair.

Com Mari, eu não precisava de muita encenação. Aquela intimidade se estabeleceu na primeira manhã. E não era nem mesmo por causa das semanas acordando juntas no Big Brother: a presença de câmeras na casa acabava com o tom íntimo de toda experiência. Ali, porém, éramos somente nós duas e a bolha em que estávamos não era nada desconfortável. Era revigorante. Acolhedora até. Eu não ficava rezando para tudo acabar o mais rápido possível; em vez disso, eu meio que desejava que se repetisse por muito mais vezes.

Quarentena em São PauloOnde histórias criam vida. Descubra agora