Quarentena, dia 22

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Bianca

Era oficial: eu precisava ir ao supermercado.

Olhei as prateleiras que eu chamava de despensa por alguns segundos e, não apenas não havia quase nada ali, mas o pouco que havia se dividia em 1. produtos com validade vencida em 2018 e 2. coisas que eu não sabia o que eram ou para o que serviam. Definitivamente não tinha nada que me ajudasse a preparar um café-da-manhã bacana para Mari.

Teria que fazer a minha especialidade, então: pão com ovo. Mais especificamente, as duas últimas fatias de pão e os dois últimos ovos.

Sim. Eu precisava mesmo ir ao supermercado.

Mariana tinha dito que iria no dia anterior, mas ela ficou presa na casa do ex-noivo produzindo conteúdo. Quando ela ligou e me avisou da mudança de planos, eu só soube escutar enquanto meu interior todo se contorcia para eu não acabar falando mais do que devia - afinal, eu ainda estava aprendendo a lidar com o fato de que eu gostava dela mais do que amigas deveriam gostar umas das outras.

Não que eu não pegasse minhas amigas e meus amigos. E não que meus ex-peguetes não virassem meus amigos depois. Comigo essas duas posições se embaralhavam com certa frequência e, sendo muito honesta, nunca tinha sentido a necessidade de refletir sobre as diferenças entre uns e outros. Se eu sentisse vontade de pegar um amigo e ele ou ela quisesse, ótimo. Se não quisesse, ótimo também. Nada desses assuntos tirava meu eixo.

E então Mariana González entrou em cena. Agora estava difícil achar meu eixo de novo.

Eu tinha passado o dia de ontem pensando em como quase a beijei. A lembrança ainda me trazia arrepios na espinha. Eu não sabia o que mais me surpreendia: a intensidade com que a desejei ou a dor da rejeição. Eu não estava acostumada a ficar remoendo meus sentimentos e a forma como eu os revivi em looping no dia de ontem era alarmante.

Era o efeito da quarentena? Da abstinência sexual forçada? Da carência afetiva?, eu me questionava. Mas, no fundo, eu sabia a resposta.

No fim, tinha sido melhor não ter beijado Mariana. Era óbvio que eu sentia mais por ela do que ela sentia por mim. Teria sido maravilhoso? Eu tinha certeza que sim. Mas como seria acordar no dia seguinte e voltar a agir como se nada tivesse acontecido?

Eu não sabia e não queria saber.

- Foco, Bianca - falei em voz alta enquanto quebrava os ovos. Não queria passar mais um dia sem conseguir ser produtiva porque estava pensando em Mariana. O dia de ontem tinha sido mais que o suficiente.

Fazendo meu máximo para me concentrar em minha missão, tostei as fatias do pão, mexi os ovos e incrementei com o resto do queijo ralado ainda não estragado da geladeira. Sal, pimenta e pronto.

Ia servir o café numa das minhas canecas preferidas quando o celular tocou. Era Miguel.

- Fala, migo.

- Bianca, você viu suas notificações?

Revirei os olhos, já imaginando o que estava por vir pelo tom dele: eu provavelmente tinha sido cancelada enquanto estava em casa curtindo minha fossa moral. Miguel sempre me alertava quando eu era alvo de fofocas para eu não me surpreender e responder tudo com minha impulsividade. Ele entendia que, mesmo acostumada e fazendo piada, eu não era de ferro.

- O que eu fiz dessa vez?

- Você, nada. Mas a Gabi Martins deu uma entrevista dizendo que não havia a menor chance de ela voltar com o Guilherme.

- E daí?

- E daí - ele suspirou do outro lado da linha. - E daí que ela admitiu que não descartava um relacionamento com seu ex.

Quarentena em São PauloOnde histórias criam vida. Descubra agora