Ser

94 12 30
                                    

17 de Setembro

Você me fez uma pergunta interessante hoje.

"O que quer ser?" você questionou, enquanto estávamos deitados debaixo da sombra de uma árvore, no parque.

Sua cabeça repousava em meu peito, possibilitando-te ouvir as batidas aceleradas de meu coração cansado e fazendo com que o cheiro doce e entorpecente de suas ondas castanhas invadisse meus pulmões. Seus dedos da mão direita realizavam "desenhos" em meu tronco coberto por uma camisa azul-marinho, mas que não impediu-me de sentir seus toques suaves que enviaram cargas elétricas por todo meu corpo.

De início, não havia entendido sua pergunta, porém deduzi que estava se referindo a que profissão eu gostaria de atuar.

Pensei um pouco.

Para ser sincero, nunca achei que viveria o bastante para me dar o luxo de pensar sobre isso. Desde pequeno, mesmo com as declarações dos milhões de médicos que me consultaram, que alegaram que minhas chances de sobreviver eram boas, sempre tentei não criar expectativas.

Minha mãe, ao contrário, tem a frase "A esperança é a última que morre" bordada nas almofadas do sofá, fato que me faz sentir mal.

Ela e Miguel foram os únicos motivos para eu não ter feito as malas e me mandado dessa cidade para aproveitar o tempo que ainda me restava.

Com o tempo, aprendi que eu precisava ficar vivo por eles. Daí você chegou na minha vida. E eu nunca desejei tanto continuar respirando.

"Não falo de trabalho, se é isso que está pensando." você explica.
"Me refiro ao o que quer ser como pessoa, em espírito, o que busca...".

Havia sido pego de surpresa.

Eu não sabia o que responder. Por isso, perguntei:
"O que você quer ser?"

Seu silêncio denunciou seu momento de reflexão.

Alguns segundos tinham se passado quando você respondeu:

"Acho que quero apenas ser. Sem rótulos, afinal apenas embalagens possuem rótulos. Creio que quero viver a vida em todas as suas fases. Acredito que as nossas experiências nos torna naquilo que somos.

Pode ser assustador, eu concordo. Sabe-se lá o que o mundo nos prepara. Mas prefiro cicatrizes do que o vazio."

"E estou incluso em sua aventura?" questiono.

"Com toda certeza, senhor Peña." você afirma, levantando o rosto e apoiando seu queixo em meu peito, sorrindo para mim seus olhinhos brilhantes e hipnotizantes. "A questão é: você vem comigo?"

"Sabe que eu iria com você à qualquer lugar." digo "Bom, eu fui com você até a casa da sua vizinha maluca para buscar o seu gato, que ela havia sequestrado, então, é. Literalmente, vou a qualquer lugar com você."

Rimos depois de lembrar desse fatídico dia. Quase fomos massacrados por uma panela de pressão e uma vassoura, lembra? Por sorte, "Sr. Peludinho", seu gato, conseguiu encontrar um bom esconderijo para vocês.

É claro que tinha que ser em cima de uma árvore.

E eu, com 95% do meu corpo dominado pelo sedentarismo, me limitei a me esconder atrás do largo salgueiro.

"Mas, sabe" você começou, depois de nossa pequena crise de risos, colocando sua mão direita em meu rosto, acariciando me bochecha com o polegar "Nada que o mundo possa me oferecer pode ser melhor do que estar aqui, com você, Peña."

A famosa falta de ar acabou de me dar um "oi".

Contornei suas cintura com minhas mãos, entrando em contato com sua pele quente, já que o ato de estarmos deitados fez com que a mesma subisse um pouco.

Te trazendo mais para cima, ficamos cara a cara: suas orbes cor de café olhavam-me com intensidade; sua respiração encontrava-se tão errática quanto à minha, levando-me a inspirar fundo seu perfume delicioso que sempre me deixa tonto; seus lábios carnudos estavam à centímetros dos meus, despertando em mim aquela conhecida vontade inquietante de sentir seu gosto.

"Eu te amo" eu sussurrei, tendo ar suficiente apenas para isso.

"Eu te amo" sua testa encostou-se na minha no momento em que abri a boca para falar mais fui interrompido. "E se você falar 'Eu te amo mais', eu vou te dar um soco".

Soltamos uma risada antes de selarmos nossos lábios de uma vez.

Eu não sei o que eu quero ser, Souza.

A cada dia que passa, quero ser alguém diferente: um cara normal, com um coração saudável; um filho que não precisa ser acorrentado por fios de hospitais; um irmão mais velho que possa servir de exemplo; alguém que possa viver com você as mais variadas aventuras sem ter que se preocupar em não fazer muito esforço para não ativar a bomba relógio dentro do peito; ou até o narrador-observador de sua história (olho para você com frequência, então não será uma tarefa árdua).

Só sei de uma coisa: eu quero viver.

Eu sei que a esperança, muitas vezes, pode ser apenas um sussurro em meio a uma imensidão, e que, talvez, eu esteja só me agarrando a uma ilusão, levando em consideração a situação crítica em que se encontra minha capacidade cardíaca, mas eu não ligo.

Eu quero viver.

Quero viver pela minha mãe, pelo meu irmão, por você.

E pela primeira vez em anos, quero viver por mim. Se eu não lutar, quem vai?

Words - IsulioOnde histórias criam vida. Descubra agora