capitulo 20

687 42 10
                                    

Acordei na mais completa escuridão. De bom não havia nada naquele quarto.
Mergulhado num vazio enorme, fiz força, muita força para não chorar. Chorei. Estava chorando. Gostaria que minha mãe estivesse lá para me abraçar.
Suaves batidas na porta.
- Marcus?
Levei um susto.
- Pai!
- Eu gostaria de falar com você, filho! Estou esperando lá embaixo. Tudo bem?
- Já vou descer, pai.
Imagino a preocupação que ele devia estar sentindo.
- Pai? O senhor ainda está aí?
- Fala, filho.
- Que horas são agora?
- Oito horas.
- Obrigado pai.
Ao tentar acender a luz o abajur, quase derrubei um copo que estava sobre o criado-mudo. Com a luz acesa, pude ver o travesseiro manchado de sangue. O meu sangue. Pensei em ligar para o Renato, mas não seria uma boa idéia. Muito mais seguro se conversássemos amanhã. Com certeza ele já deveria estar arrependido do que fez.
Renato jamais me deixaria. Nós nos amávamos. Tomei banho com essa certeza e desci para falar com meus pais. Minha mãe ao telefone conversava com a Lídia e meu pai, ao me ver, desligou a TV.
- O que foi isso no seu rosto, Marcus? Está inchado!
- Não é nada, pai. Depois a gente fala.
Ele entendeu que eu não gostaria de falar na frente da mãe que, mesmo ao telefone, ouviria.
- As coisas não devem ter acontecido do jeito que você queria, certo?
- Deu tudo errado, pai. Mas acho que amanhã tudo se resolverá. Tenho que acreditar nisso.
- Você não acha importante falarmos sobre o que está acontecendo?
Não seria correto de minha parte dizer um 'não', afinal de contas eles são meus pais e, desde Sexta-feira, esperam por esta conversa.
- Acho, pai.
Ele ficou muito contente com o meu 'sim' e, colocando a lata de cerveja sobre a mesinha da sala, disse que Beatriz havia telefonado.
- Acho, pai.
Ele ficou muito contente com o meu 'sim' e, colocando a lata de cerveja sobre a mesinha da sala, disse que Beatriz havia telefonado.
- O que ela queria pai?
- Não sei exatamente. Foi sua mãe quem a atendeu e, em seguida, a Lídia ligou.
Mas acho que era para dizer que com ela está tudo bem.
Esperando por um comentário que não fiz, ele disse:
- Você percebeu como as duas se dão bem, Marcus?
Percebi, pai. A mamãe gostou muito da Beatriz.
- Eu também. Ela parece ser uma moça muito caprichosa.
- Pega leve, pai.
- Acho que exagerei um pouco não é, filho?
- Hã, hã.
Não precisava nem conhecer a Beatriz para saber que, definitivamente, ela não era uma garota caprichosa. Bastaria conhecer o seu Fusca.
- Vamos indo, Marcus?
- Aonde, pai?
- Pensei em jantarmos fora. Conheço um restaurante bem tranqüilo. Lá poderemos conversar à vontade. Vamos?
- Ok, pai. Mas e a mamãe?
- Iremos só nós dois, Marcus. Conversa de pai para filho.
Realmente o restaurante que meu pai havia era bem tranqüilo. Ficamos com a mesa mais isolada e, após termos pedido as bebidas, para minha surpresa ele entrou no assunto:
- Sabe como é filho, depois do que aconteceu entre você e a Beatriz, sua mãe e eu achamos que talvez você precise de orientação.
Sorri.
- Eu estou falando sério, Marcus. Não sei exatamente sua mãe e eu erramos, mas de alguma forma nós não demos a educação correta para você. Num ponto qualquer você ficou psicologicamente preso dentro de um mundo pequeno e errado, que acabou fazendo com que pensamentos estranhos fossem considerados por você como normais. A prova dessa limitação é que, na primeira oportunidade que surgiu à sua frente, você acabou fazendo sexo com uma garota. E não venha me dizer que não gostou. Você até a trouxe para dentro de casa. Estou mentindo?
- O senhor não está mentindo. Eu gostei de transar com a Beatriz, mas… - Eu sabia que estava certo!
- Pai, não se empolgue tanto. Fale mais baixo.
- Garçom? Mais um uísque, por favor!
Seus olhos brilhavam.
- Garçom? Traga dois uísques. Meu filho vai beber comigo!
Mal sabia ele que eu já havia detonado algumas doses em casa.
- Pai!
- Ainda não acabei, filho!
- Você e a Beatriz poderiam viajar. Que tal conhecer a Europa, Marcus?
- Pai, não é por aí .
- Marcus, se vocês preferirem, viajem para outro lugar. Estados Unidos, Canadá, sei lá, você escolhe. - Pai! O senhor sabe que não é disso que estou falando.
- Marcus, me escute! Não foi bom fazer sexo com uma mulher?
- Foi, pai, mas… - Então, filho! Só lhe falta orientação.
- Pai! Na verdade eu sou bissexual.
- Você não sabe!
Como não sei, pai?
- Marcus! No dia da confusão, você me disse que era homossexual. Agora você me diz que é bissexual?
Nisso ele tinha razão, mas com certeza eu não era como ele: heterossexual.
- Marcus! Fazer a coisa certa é uma questão de costume, de hábito, filho! De hábito!
- Pai, fale mais baixo.
O brilho nos seus olhos era constrangedor.
- Filho, eu só peço uma coisa. Vamos procurar um psicólogo! Sua mãe conhece um muito bom que, com certeza, poderá nos ajudar.
- Pai, acho que perderíamos tempo falando com alguém assim.
- Mas, filho, toda tentativa é válida. Dê essa chance a você mesmo!
- Pai, a minha realidade é outra.  Ele não me ouvia.
- Vamos tentar, Marcus! É importante!
Não havia como discutir.
- Tudo bem, pai. Eu aceito ir a um psicólogo, mas tem uma condição.
- Pode pedir qualquer coisa, filho. Eu aceito!
- Calma, pai. Não é tão fácil assim.
- Seja o que for, eu aceito.
Era duro Ter que ofuscar o brilho nos olhos de alguém com esperança, principalmente de um pai. Do meu pai.
- Peça, filho!
- Eu gostaria que o senhor conhecesse um pouco mais do meu mundo. Esta é a minha condição, pai.
- Vamos em frente!
- Pode não ser leve, pai.
- Tudo bem. Estou preparado.
Difícil ou não, ele teria que enxergar certas coisas. Fazê-lo sair dali levando consigo falsas esperanças não seria honesto de minha parte.
- Vocês querem pedir o jantar?
Nem vi o garçom se aproximar. Meu pai disse a ele que provavelmente nem jantaríamos e pediu uma porção dupla de queijo provolone.
Expectativa com a saída do garçom.
- Posso começar a falar, senhor Giorgio?
Sorrimos. Foi a primeira vez em que o chamei pelo nome. Me senti mais à vontade com isso.
- Disfarçadamente, pai, olhe para trás e veja o casal de namorados na mesa à sua direita.
Ele olhou.
- Olhe bem, pai.
- Olhei.
- O seu filho acha a garota um tesãozinho.
Ele concordou.
- Só que o seu filho aqui, pai, também acha o rapaz um tesãozinho.

Ficamos vermelhos de vergonha.
- Posso continuar, pai?
Sem me olhar nos olhos e apenas com o movimento da cabeça, ele disse que sim.
- Então, pai, o senhor tem idéia de quantas vezes eu já me masturbei pensando em rapazes iguais a este?
Ele continuava de cabeça baixa. - Sabe, pai, eu nunca me senti um sem-vergonha por isso. Esse desejo vem de dentro, pai. De dentro. Não dá para controlar. Pai, eu gosto da figura masculina. Acho bonito. Tenho tesão. Silêncio enquanto o garçom nos servia.
- Pai! A Beatriz não foi a primeira garota com quem saí, mas foi a única que fez coisas diferentes comigo. Além daqui que o senhor considera normal, ela curte muito me chupar atrás… brincar com os dedos e outras coisas mais.
Ele respirou fundo.
- Voltando no tempo, pai, o senhor tem idéia de como foi difícil para mim Ter que ser duas pessoas dentro de uma? De um lado, o filho prodígio do senhor Giorgio e da dona Ana; e de outro, um garoto que sente tesão por rapazes. Pai, eu estava com treze anos quando tudo isso começou. O senhor não pode imaginar o que foi a minha cabeça dos treze aos quatorze anos, pai. Tudo foi muito difícil… Chorei.
- Pai… tem mais uma coisa que o senhor precisa saber.
Silêncio.
- Pai! Lembra quando me cortei fazendo pipa e fui parar em estado grave no hospital? Não foi por acidente… que a gilete cortou o meu pulso.
Choramos.
- Desculpe… pai… - Filho… Choramos.
- Meu Deus! Onde eu estava… quando… tudo isso aconteceu? Filho, eu… - Desculpe… pai.
Ele não conseguia falar direito.
- Pai, eu sei que ninguém tem o direito de tirar a própria vida, mas naquela época as coisas estavam muito confusas na minha cabeça. O medo, a insegurança e a humilhação viviam comigo todos os dias. Tenho até vergonha de contar ao senhor o que me levou a fazer aquela besteira… - Filho, por favor, me conte tudo.
- Parece que problema puxa problema, pai. Se não bastasse toda a confusão que já rolava na minha cabeça, ainda fui cometer um erro gravíssimo no colégio.
- No colégio, filho?
- No antigo colégio, pai.
Dei um gole no uísque antes de continuar a falar. Minha boca ardeu.
- Naquele dia, pai, cheguei atrasado ao colégio e acabei sentando em qualquer carteira. Estava assistindo à aula - era de matemática -, quando alguém me passou a mão.
Era o cara da carteira de trás. O líder da turma, o que não tinha medo de nada e o que enfrentava todo mundo. Com certeza, ele fez isso de brincadeira e eu muito burro…
Fale, filho.
- Eu muito burro, pai, em vez de reagir, fiquei quieto, fingindo que não era comigo. Eu tinha muito medo dele, pai… daí para frente, a minha vida se transformou num inferno. Comecei a chorar.
- Tudo isso é passado, filho. O importante é que agora estamos juntos. - Ele e sua turma, pai, acabaram comigo. Não me respeitavam. Todos os dias mexiam comigo na frente de todos. Isso acontecia nos corredores, na sala de aula e no pátio. Às vezes com palavras pesadas… passadas de mão… Minha voz saía com dificuldade e suas mãos apertavam a minha mão direita. - Também por me recusar a dar dinheiro a eles… apanhei muito, pai… eram tapas no rosto… empurrões… rasteiras… cadernos rasgados… livros roubados… tanta coisa, pai… tanta coisa… Começamos a chorar.
- Filho, eu… eu… Correndo, ele foi em direção ao banheiro. Fui atrás.
- Pai!
Encostado na parede e com as mãos no rosto, meu pai não parava de chorar.
- Me perdoe, filho… me perdoe… onde eu estava… quando tudo isso aconteceu?
Me perdoe… me perdoe… - Pai… o senhor não teve culpa de nada. Eu é que sou uma droga de filho. Nunca fomos tão unidos. Abraçado, chorávamos como crianças.
- Pai, é melhor voltarmos para a mesa. Imagine só o que os garçons devem estar pensando da gente. Primeiro choramos à mesa e depois ficamos um tempão no banheiro.
- Eles não vão pensar nada de errado, filho. Venho muito aqui. Todos me conhecem. Agora, se pensarem algo ruim, como dizia seu avô Duílio: 'Che mene frega!' Lavamos nossos rostos e voltamos para a mesa onde pedimos mais dois uísques.
- Pai, se possível, gostaria que o senhor não contasse nada para a mamãe do que nós conversamos aqui. Tenho vergonha, pai.
- Ela é sua mãe, Nas se você prefere assim, tudo bem.
- Valeu, pai. - Marcus! Eu gostaria de saber o que aconteceu com o seu rosto. Está um pouco inchado, filho.
- Renato e eu brigamos, pai.
- Violência física, filho! Isso não está certo.
- Sei que não, pai. Mas se existe um culpado nessa história, esse culpado sou eu.
Não fui nada honesto com Renato. - Filho, nada justifica uma agressão física!
- Pai, senhor também me agrediu quando lhe contei da minha opção sexual.
- E me arrependo disso até hoje.
- Renato também já deve estar arrependido do que fez.
Sem detalhar muito, contei a meu pai toda a confusão que eu havia provocado, deixando bem claro que por desejo eu viveria com os dois, porém jamais sem o meu noivo.
Naquela noite demorei muito a dormir e quando isso aconteceu, várias foram as vezes em que acordei com sobressaltos. Três coisas mexeram demais comigo: a briga com Renato, a conversa com o meu pai e as tristes lembranças do primeiro colégio.
Maldito Vagner!

Eterno Amor (romance bissexual)Onde histórias criam vida. Descubra agora