De mudança

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  CHICAGO, ILLINOIS, 2014.

Uma caixa após a outra, sapatos, calças, brinquedos velhos, revistas teen, lá estava a jovem Jane Ives olhando para o caminhão de mudança que como um navio cargueiro partia na direção de um novo mundo. Novo não para ele, mas sim para ela, que sentia em seu âmago a sensação estranha da mudança repentina. Era como ser incitada a deixar uma ilha e nadar pelo oceano até chegar em outra ilha totalmente desconhecida, um mundo novo a ser desbravado. Jane enrolou um último cartaz de One direction que era a última coisa que restava do seu quarto. Aquele nó na garganta, que se apertava a cada passo, a cada curto passo que ela dava em direção a porta cheia de pequenos adesivos de caderno que ela colou durante toda sua infância, agora ficavam para trás com seus 17 anos de idade. Antes de fechar a porta ela simplesmente parou e olhou aquele quarto pouco iluminado, meio sem graça agora sem os adereços coloridos.

- Até logo quarto Espacial.

   Era como ela chamava o quarto, ao qual ela sempre imaginou viagens pelo espaço infinito. Jane era tão fascinada com o universo, que tinha uma luneta que agora estava desmontada em uma caixa que tremia dentro de um caminhão Baú da Fast and Happy, empresa de fretes e mudanças da cidade Hawkins para onde ela ia. Por vezes, em seu quarto, ela deitava no chão frio de madeira e fechava os olhos enquanto ouvia ao longe em seus pensamentos longínquos o som das ignições dos foguetes da NASA. Uma missão rumo a Marte? Não. Rumo a Vênus? Não. Rumo a saturno? Não. Rumo a outra galáxia, outro mundo, quem sabe encontrar outros seres e fazer contato com eles.

- El, vamos, temos que chegar lá antes do anoitecer. - Diz Terry sua mãe chamando do andar debaixo.
- Já vou mãe.

   El. A abreviação de Eleven, um apelido que ela ganhou da mãe e portanto de suas duas amigas, Sarah e Gabriela. Eleven, porque aos cinco anos, Jane não parava de falar sobre os número 0 e 11, ela dizia coisas dignas de um filme de ficção científica, coisas como experimentos antigos, coisas secretas, coisas do governo, coisas que sua mãe sempre ignorou. Hoje ela já se esqueceu disso, ao menos é o que pensa, uma vez que nossas memórias mais vividas jamais morrem.

   El e Terry eram amigas muito íntimas. Mãe e filha para desbravar o mundo assustador. Sem a figura paterna que lhes abandonara quando El era apenas um caroço de abacate em desenvolvimento, Terry teve de se virar nos dois papéis, e tem se saído muito bem, passando por tantas fases. Mas nunca se deparando com a fase sexual de sua filha que parecia tardar.

  Enfim, lá estava Jane descendo as escadas radiante, porém melancólica em deixar sua vida pra trás, sua raiz construída e emaranhada pela terra que formavam suas experiênciais sensoriais e suas memórias. Ela já havia se despedido de suas duas amigas, óbvio que com toda a tecnologia do mundo moderno ela poderia se comunicar com Sarah e Gabriela, mas não seria a mesma coisa que se encontrar no parque central, tomar sorvete, rir bastante e ainda por cima azarar os garotos que andavam de skate pela região, mostrando seus pomposos bíceps e peitorais sarados enquanto lançavam piscadelas provocantes.

  Lá estava El andando preguiçosamente enquanto admirava os detalhes daquilo que outrora fora uma cozinha organizada ao estilo da mamãe. Terry aguardava na porta,ela pacientemente segurava a porta enquanto via sua filha silenciosamente se despedir da casa. Terry, compreensiva, sabia que aquilo para uma jovem de 17 anos prestes a ir para a faculdade era um luto.

"Aqui jaz a vida de Jane Eleven Ives"

  Deve ser o que estava pensando Jane naquele exato instante contemplativo. Ela em silêncio com seus olhos escondidos pelos óculos Lenon, passa por sua mãe que tranca a porta uma última vez. A frente delas, na pista da garagem, estava o novo dono e morador da casa, um homem solteiro, meio esguio, mas com uma saliente curva em sua barriga, vestido, ao que Sarah amiga de El fissurada em moda chamaria de traje sem graça da série The office.
 
- Bom, aqui está as chaves da frente e dos fundos, espero que faça bom uso. - Diz Terry cordialmente entregando as chaves ao homem que gentilmente recebe.

   Enquanto Terry joga conversa fora dando ao homem dicas que ele provavelmente vai esquecer, El caminha mais para frente na rampa da garagem e contempla a belíssima vizinhança. El morava bem na curva da rua Benjamin River, número 87, rua conhecida pelos jardins pomposos e belíssimos com árvores que estendiam seus galhos e lançavam suas folhas como buquês naturais e chamativos. Arbustos multicoloridos e flores de aroma doce. A frente a casa 86, a casa do Brown, muita bonita escondida por uma árvore de folhas grandes, grama sempre verde. Jane se lembra da festa de Jimmy Brown deu no ano passado, em que ela teve resgatar Gabriela das garras do jogador garanhão da escola Jacksoneu Cringer. Jane se lembra de ter de fingir ser lésbica para dizer que ela e sua amiga namoravam. Ela até mesmo ensaiou um beijo em Gabriela que mesmo um pouco bêbada seguiu o roteiro. Pelos próximos dois meses, Jane e Gabriela fingiram um namoro com direito a beijinhos em público. Mas aquilo nunca foi o mais estranho daquela noite, a sensação de ver um rosto que seu cérebro julga conhecido, mas que você sabe que nunca viu na vida. Foi assim que ela se sentiu ao ver aquele rapaz de cabelo meio bagunçado, praticamente rebelde, magro, nariz fino, rosto fundo, pele branca, roupas que lembrariam um membro de banda Indie. Aquele momento... Aquele breve momento em que seus olhos se cruzaram, e ela que estava encostada na pia da cozinha sem entender uma palavra do que Maxuel Walton, o CDF MAIS-QUE-BONITINHO do colégio dizia. Foi, então que quando aquele garoto desviou o olhar, Jane derrubou um copo de ponche, que antes de tocar o chão parou no ar e voltou para sua exata posição, de sorte que Maxuel não viu aquilo.
  De sorte que ninguém viu.

  Outro daqueles episódios estranhos, que mais se pareciam com os sonhos estranhos que ela tinha volta e meia, mas que ela sempre ignorava. Somente Terry sabia do que Jane era capaz, da sua capacidade de mover objetos sem nem tocar neles. Terry sempre dizia a ela que a primeira foi quando a mamadeira voou até seu berço devagar quando ela ainda era um bebê. Terry se perguntou se não era um Fantasmas, mas conforme o tempo ia passando ela foi percebendo que se tratava de sua própria filha, e então Terry decidiu que aquilo devia ser um segredo guardado não só a sete chaves, mas a mil chaves entre as duas.

  Jane ficou tão imersa em suas memórias, tão mergulhada na sua própria mente que se esqueceu de volta para entrar no carro. Ela só foi reparar quando Terry desceu um pouco o carro e abrindo o vidro disse:

- Vai ficar aí parada o dia todo? Acho que você pode chamar um Uber para sei lá, quem sabe te levar até Hawkins.
- Aí mãe, da um tempo com o sarcasmo. - Diz El entrando no carro.

  Terry engata a primeira marcha e elas seguem para a direita descendo a rua Benjamin River. El olha para trás uma última vez e vislumbra seu passado, suas memórias, sua antiga vida. Ela se volta para frente, meio melancólica, sentindo-se estranha, ela vislumbra a sua frente, seu futuro, sua nova vida, suas novas lembranças que ainda irão se formar.

  Enfim, ela segue para mais um ciclo, mais um ponto que sua jornada lhe leva a passos pacientes e até mesmo vagarosos, por um momento ela fecha os olhos e tenta imaginar aquela como uma viagem pelo espaço, o espaco desconhecido.

MILEVEN - AMOR ATRAVÉS DOS TEMPOSOnde histórias criam vida. Descubra agora