Aperto

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De novo, mais uma vez, melhor, mais rápido e mais forte.

Dou meu máximo, tento de novo mesmo falhando várias vezes, não durmo, não como, apenas treino.

All Might foi bem claro comigo, os outros dependem de mim, precisam que eu treine, precisam de uma nova luz nesse mundo escuro, precisam que eu me transforme e me torne o novo Pilar.

Mas, como? Estou mais quebrado que tudo, eu não consigo nem me manter de pé, imagina dar esperança aos outros? Ainda acho que foi um erro ele ter me escolhido para substituí-lo.

Porém isso é tudo que eu tenho, é isso que ainda dá sentido a minha vida, eu preciso de um motivo pra acordar todas as manhãs, um sentido pra olhar no espelho e não sentir que a pessoa refletida é desprezível... inútil.

Por isso eu continuo com isso, para não morrer, por mais que eu queria isso.

-Você pensa de mais garoto- All Might disse se sentando ao meu lado- Pensar em coisas que você não é capaz de mudar pode ser mais nocivo do que você imagina.

-Como eu paro de pensar então?- perguntei mais para mim do que pra ele- é impossível, não tem como, minha mente mesmo esquecendo agora, eu sei que a noite isso vai tirar meu sono.

Ele me encara por um minuto, acho que está tentando organizar as palavras. Todas as pessoas fazem isso quando estão perto de outra que passou por uma perda, escolhem as palavras para não piorar a situação, evitam falar da pessoa que morreu como se ela fosse um tabu e isso me irrita. Me irrita que não me tratem de forma normal. As pessoas morrem no processo natural da vida... e isso dói, mas saber que você é responsável pela perda... dói mais ainda.

-Luto é uma coisa muito dolorosa, pessoas ficam anos presas na ideia de que poderiam ter feito algo, que poderiam ter feito diferente, mas "talvez" não escreve história meu caro. E você se culpa de mais, vê como se você fosse o monstro dessa história, mas eu acho que as coisas vão ser bem diferentes pra você.

-Acha... você disse que acha... não passa de uma merda de uma suposição...- Não quero chorar, não agora, não na frente dele.

-Eu não posso afirmar, pois o nosso futuro é incerto, mas você será capaz de grandes coisas.

-Para com essa merda, nem você mesmo acredita nas suas palavras... só me escolheram por que eu dei sorte de vencer, por que vocês estão desesperados.

-E você? Por que está aqui se não acredita no que eu te digo?

-Pra me redimir... pra não morrer... pra sei lá, ser alguma coisa de novo.

-Acha que estar fazendo isso te trará a paz que você precisa?

-É o que eu espero... não sei, só... só quero voltar a ser quem eu era- nem força psicológica tenho pra ficar irritado com essa conversa. Ou só não fique por que.. eu realmente preciso de alguém pra me ouvir.

-Olha jovem, entrar aqui, infelizmente, não vai te trazer conforto em seus sentimentos, o único que pode fazer isso por você, nesse momento, é você. Mas, ter alguém pra conversar como um amigo, seria bom. Você não tem falado com outras pessoas pelo que eu reparei.

Não tenho falado com ninguém na verdade, a maior parte do tempo eu passo aqui treinando, só pra não ter que pensar no que já passou. Ignorar um problema não o resolve, mas pelo menos eu finjo que ele se resolveu e isso a curto prazo o torna menos doloroso.

-É... eu estou bem focado.

-Pra esquecer? Ou para superar?

-Tem diferença?

-Quando você esquece, na verdade está se enganando. Quando algo nos marca, nós nunca somos capazes de esquecer, apenas fingimos não nos importar, mas com o tempo o sentimento cresce e se não tomar cuidado ele te mata sem você perceber. Quando você supera, se lembrar da situação não te causa mais nenhum sentimento negativo e você acaba aprendendo coisas com aquela experiência. Quando nós nos forçamos a esquecer, só resta dor, ódio e amargura, mas quando superamos, nos tornamos maiores, mais sábios e mais fortes.

Eu realmente não sei o por que, nem como, mas as palavras dele parecem como um remédio. Não está me ajudando muito, porém só de ouvi-las eu sinto um alívio estranho.

-Se eu estivesse ouvindo isso a um tempo atrás... talvez já teria te xingado no meio da frase.

-Você não era muito de escutar certo?

Assenti.

-Isso é bom, escutar nos ajuda e falar mais ainda. Mas, não se martirize tanto assim, deixe o tempo curar as feridas abertas e a esperança te guiar de novo para um futuro maior.

-... esperança... é.

Ele me encara por breves segundos, em seus olhos não vejo pena, nem dó... vejo algo mais caloroso, que me fez bem... vejo compaixão.

-Vamos fazer assim, tire o resto dia de folga, vá ver seus amigos e colocar a cabeça no lugar, amanhã retornaremos ao ritmo normal, pode ser?

Eu ia protestar, mas não consegui, eu estava precisando disso, precisava parar, precisava pensar. Mesmo que isso signifique colocar a mão inteira dentro da ferida, eu preciso limpa-la e fazer os pontos. Preciso tentar me recuperar... talvez.

-Obrigado All Might.

-Não tem de que meu jovem. Se precisar de algo, não hesite em pedir.

Ele se levanta do banco, atravessa o galpão de treino e vai embora.

Observo a destruição do local, cheio de marcas causadas pelo fogo das minhas explosões, manequins de batalha totalmente despedaçados, seus restos podem ser vistos por todo o local, equipamentos para exercitar os músculos quase completamente destruídos, e principalmente um cheiro de queimado muito forte paira no ar. Eu sozinho transformei isso em um cenário de guerra, imagino o que uma equipe de heróis profissionais pode fazer.

Recolhi minhas coisas e sai do local, pensando em como resolver toda essa merda que está se passando comigo. Talvez eu nunca supere totalmente, mas se o fardo aliviasse só um pouco, pra mim seria ótimo.

Na metade do caminho, percebo que nunca mais falei com Kirishima desde a morte da Mina. Provavelmente ele está na mesma que eu pois os dois eram muito amigos e cresceram juntos, sem falar que quem matou ela foi a pessoa que ele mais amava. Eu e ele tivemos perdas importantes. Acho que mais tarde, vou falar com ele.

Ligo no celular dele e ninguém atende. Achei estranho pois não estava tão cedo assim. Ligo de novo. Nada.

-Ele deve estar na U.A, as aulas não terminaram pra eles ainda...- penso em voz alta.

Um sentimento estranho me toma em relação a isso... eu vi ele chegando hoje de manhã? Eu vi ele alguma vez essa semana? Será que eu estava tão aéreo assim? Não me lembro de ter visto seu rosto, nem na entrada e nem na saída. Talvez por que eu esteja chegando mais cedo e saindo mais tarde algumas vezes... mas por que sinto que tem algo errado?

Minhas paranóias não me deixam em paz... mas não tem nada que eu possa fazer, então mando uma mensagem falando que vou passar na casa dele a noite, só pra conversarmos em relação aos recentes acontecimentos.

Sigo pela estrada deserta, sozinho e cansado. Mas o que mais incomoda é o estranho aperto no peito, a sensação de que é tarde de mais. Senti isso um dia antes de minha mãe morrer.

Não vou aguentar se a história se repetir com ele.

≈𝙼𝚒𝚛𝚛𝚘𝚛𝚎𝚍  𝚆𝚘𝚛𝚕𝚍≈Onde histórias criam vida. Descubra agora