CAPÍTULO 42

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“Querido Diário, será você capaz de adivinhar onde estou? Provavelmente não, porque você é feito de papel, então deixe-me responder: num pub! Isso mesmo, em um PUB! E para assistir a um SHOW! Vovô e vovó estão por trás disso, é claro… Segundo eles, a banda que vai tocar aqui hoje é de uns meninos da minha turma, mas eu não estou botando muita fé nisso. Verdade seja dita, estou contando os minutos para poder voltar para casa. Aqui está lotado de gente e tantas pessoas já esbarraram no meu braço que é um milagre que eu não tenha transformado essa página numa espécie de desenho abstrato. Para ser sincera, não sei quem eles acham que eu vou encontrar aqui. Vovó se despediu de mim com tantos gritinhos eufóricos que era de se esperar que eu fosse de repente dar de cara com o amor da minha vida ou coisa parecida, mas- Meu Deus, esbarraram em mim outra vez. Já falei o quanto quero ir para casa?”

Diário de Amélia, 16/07/2020

Sebastian

Going through the night just looking around — meus dedos alcançam outro acorde na guitarra. — Cause nothing is alright if I don't know the reason why we're apart…

— Como você consegue? — o som da voz de Martha me alcança e ergo os olhos do instrumento em minhas mãos para vê-la sentada em uma das poltronas da sala me encarando.

— Consigo o quê, exatamente? — pergunto, sorrindo para a senhora que para mim era como uma segunda mãe.

Ela inclina a cabeça na minha direção, indicando a mim e a guitarra.

— Fazer música desse jeito. Do zero, estou querendo dizer. Você sempre foi assim, sabe, desde criança — Martha riu, como se revisitando memórias antigas: — Ficava em silêncio, muito reflexivo, e aí se trancava no quarto com o violão ou sentava ao piano e então tocava e cantava por horas a fio…

Eu balanço a cabeça, duvidoso.

— Como assim, “reflexivo?” — franzi a testa, sem entender. — Eu só… toco, não sei. Vem de repente.

— Não, não, não senhor. Você tem uma cara — ela passou a mão pelo rosto, imitando uma expressão séria e encarando o vazio. — Mais ou menos assim. Eu e a sua mãe já percebemos isso. Você fica quieto e então parece pensar com muita profundidade sobre alguma coisa, daí se levanta e vai tocar. Essa é a sua cara de quem está criando música. Aposto que se prestar atenção, vai notar que sempre escreve sobre o que se passou na sua cabeça bem antes de começar a compor — e, se recostando na almofada atrás de si, ela indagou: — Sobre o que é que você está pensando agora, hein?

Olho de esguelha para a tela do meu celular, onde as primeiras linhas da letra da música que acabei de começar a compor estão brilhando em resposta. Martha tem razão. Fico tão compenetrado no processo de criação da música que só percebo o significado por trás dela depois. No entanto, sei exatamente sobre o que escrevo. Sobre quem eu escrevo.

Esse silêncio entre Amélia e eu está me matando. Tenho tentado aguentar firme na decisão de não forçar a barra e ir atrás dela, mas e se ela acabar por entender errado? E se achar que não quero falar com ela e continuar me evitando? Odeio essa sensação de que há uma barreira entre nós dois. Sinto a falta dela, porra.

— Acho que deve ser a entrega que a sua mãe está esperando — Martha diz, me arrancando da minha própria frustração.

Sacudo a cabeça. Estava tão absorto que nem mesmo ouvi o interfone tocando. Faço um sinal para que a mulher à minha frente não se levante.

— Deixa que eu vou — digo, colocando a guitarra de lado e me levantando do sofá.

Caminho até a porta sem pressa e, ao apertar o botão de voz do interfone, pergunto quem é. Espero receber uma resposta, mas ela não vem. Franzindo a testa, ligo o monitor da câmera da porta da frente e também não vejo ninguém.

Relatos de uma garota que não liga pra você Onde histórias criam vida. Descubra agora